Notas da 7a sessão do curso (28/05/2025): Da proairese aos personagens (R.Barthes, U.Eco e U.Volli)
Introdução às Teorias da Narrativa (GEC 114)
Aula no 6 (28/05/2025)
Da proairese aos agentes: “estruturas actanciais” e funções dos personagens na evolução narrativa (R.Barthes/U.Eco/U.Volli)
1. Na sessão anterior do curso, avançamos sobre o problema do quanto a evolução da narrativa enquanto produção discursiva envolvia um perfil isotópico de sua coerência textual e semântica – e que conferia ao desenho de suas seqüências discursivas um tipo de configuração caracterizada (ao menos por certas vertentes semióticas das teorias da narrativa) como um tipo de “vínculo funcional” entre seus episódios constituintes ou dotados de maior importância para a propagação contínua das histórias: exploramos particularmente o modo como as diferentes situações que configuram certos acontecimentos de uma narrativa era “funcionalizada” – seja por princípios disjuntivos (de abertura ou fechamento episódicos) ou de mera continuidade “crônica” das ações, e que definiriam as duas grandes ordens das “funções” narrativas (designadas por uma longa tradição do pensamento teórico sobre narrativas, desde o formalismo de Propp até a análise estrutural de Roland Barthes).
Neste último caso, verificamos também que suas formulações iniciais sobre o quadro das funções narrativas sofreu uma mudança de formulação, começando pela designação das “funções cardinais” e das “catálises” e finalmente se resolvendo na diferença puramente funcional (mas estruturalmente solidária) entre “grandes ações” e “ações miúdas”: com essa subdivisão das funções que solidarizam grandes extensões de uma obra narrativa, Barthes já indicava a chegada de seu pensamento a um princípio fundamental da ordenação narrativa – conferida de algum modo por aquilo que ele designava como o “código proairético” da narratividadeo; este último designava uma propriedade do discurso narrativo de tecer devidamente os modos de apresentar e resolver situações disjuntivas, que caracterizava particularmente a seqüência discursiva da narração.
“Como chamar esse código geral das ações narrativas, algumas das quais parecem importantes, dotadas de grande densidade romanesca (assassinar, raptar uma vítima, fazer uma declaração de amor, etc.), e outras muito fúteis (abrir uma porta, sentar-se, etc.), afim de distingui-lo de outros códigos da cultura que investem no texto (...)? Referindo-me a um termo do vocabulário aristotélico (Aristóteles é afinal o pai da análise estrutural das obras), propus chamar esse código das ações narrativas de código proairético. Ao estabelecer a ciência da ação ou práxis, Aristóteles, de fato, fá-la preceder uma disciplina anexa, a proiaresis, ou faculdade humana de deliberar antecipadamente o final de um ato, de escolher (é o sentido etimológico),entre dois termos de uma alternativa, aquele que se vai realizar.” (BARTHES, 2001: 156,157).
Ainda assim, ao estabelecer essa propriedade “proairética” da resolução de situações narrativas (e que atenderia a uma espécie de “instinto de sobrevivência” das mesmas), examinamos, especialmente a partir de situações como as de perseguições em filmes de ação (partindo do caso clássico de Bullit, dirigido por Peter Hyams) que o atributo da escolha da sucessão não poderia ser explicada puramente pelas propriedades “funcionais” da mera seqüência narrativa (como própria à sintaxe dessa sucessão de ações), como se se tratasse de algo que resolvido no plano meramente diacrônico (ou mais especificamente, “sintagmático”) da construção das situações narrativas.
Especialmente no caso da idéia de “proairese”, descobrimos que é necessário introduzir à reflexão algo mais do que a pura exposição vetorial dos eventos sucessivos de uma história. Pois mesmo na seqüência em questão, testemunhamos a manifestação originária de certas direções assumidas pela sucessão das ações que depende da intervenção dos agentes da intriga. Pois é notável que um aspecto importante da ordenação da seqüência que promove a fluidez destas trocas é o fato de que toda a ação e todas as escolhas que a narração faz, em termos do foco sobre os agentes da historia é promovida pela modulação de um movimento contínuo e ritmado - tanto no plano das escolhas de decupagem nos segmentos visuais da seqüência, quanto no do próprio ritmo constitutivo dos diferentes pontos de vista construídos para a ação.
Em toda esta evolução das ações desse segmento, evoca-se quase à perfeição aquilo que Barthes caracteriza acerca do “código proairético”, com respeito às funções que ele executa para manter viva a evolução da narrativa.
“ …é óbvio que, colocada a cada ação diante de uma alternativa (dar-lhe tal ou tal prosseguimento), a narrativa sempre escolhe o termo que lhe é proveitoso, isto é, que garante a sua sobrevivência enquanto narrativa; nunca a narrativa marca um termo (enunciando-o como se cumprindo) que apague a historia, que a leve a dar meia-volta: existe de certo modo um verdadeiro instinto de conservação da narrativa que, de duas saída possíveis implicadas pela ação enunciada, escolhe sempre a saída que faz a historia ‘retomar-se’”. (BARTHES, 2001 : 157).
Uma vez mais, no interior desta seqüência exemplar de uma modalidade proairética da sucessão narrativa, encontraremos também as relações fundamentais que definem, para Barthes, a funcionalidade das ações, no contexto da historia narrada :
• em primeiro lugar, a ordem da sucessão é aqui perfeitamente “consecutiva” e “conseqüencial” (no sentido em que a evolução dos eventos pode até não ser cronologicamente pura, mas decerto logicamente conseqüente, tanto do ponto de vista das ações quanto no da narrativa);
• em seguida, a seqüência reflete uma dimensão “volitiva” das ações (já que as manifestações físicas que ocorrem traduzem as inclinações e motivações, o caráter e a disposição dos agentes, tanto no plano do tópico específico de suas ações, quanto no de sua função do esquema global da história);
• sob um terceiro aspecto, a sucessão é “durativa” (pois nela se encontram as claras marcações do início e do fim das ações, como elementos instrutivos da compreensão sobre aquilo que importa em sua exposição);
• finalmente, a seqüência estrutura-se sobre o caráter “reativo” e “eqüipolente” das interações entre personagens (na medida em que se fundam numa ação característica, como a da perseguição, que presume um esquema seqüencial da representação da sucessão, por sua vez baseado na necessária alternância das ações entre os agentes).
2. Em suma, descobrimos que as ações narrativas devem incluir (ou nos fazer presumir, em certas situações) a presença dos “agentes”, dos “personagens”, num sentido mais amplo que o da mera apresentação antropomórfica dos mesmos, mas sim enquanto “caracteres”, isto é: como entidades do plano da fábula que são portadores de um certo sistema de valores que nos faz entender não apenas aquilo que fazem, mas qual é o valor que os mesmos comunicam-nos para a evolução de uma história, enquanto centro de nosso interesse – enquanto leitores ou espectadores de uma intriga de acontecimentos.
Por isso mesmo, nesse momento, saltamos da questão da estruturação “proairética” da sucessão de ações, no modo com foi exposta na sessão anterior do curso (como mais implicada pela organização sintática das seqüências discursivas, como traço indicativo de sua “isotopia” narrativa), para finalmente entendermos como esta se complementa com algo como uma “estruturação actancial” da narrativa, para enfim entendermos a função dos personagens em uma história.
“Desde Propp, o personagem não cessa de impor à análise estrutural da narrativa o mesmo problema: de um lado os personagens (...) formam um plano de descrição necessário, fora do qual as pequenas ações narradas deixam de ser inteligíveis, de sorte que se pode bem dizer que não existe uma só narrativa no mundo sem ‘personagens’ ou ao menos sem ‘agentes’; mas, por outro lado, estes ‘agentes, bastante numerosos não podem ser nem descritos nem classificados em termos de ‘pessoas’ (...) e que por conseguinte é preciso reservar o caso, muito vasto, de todas as narrativas (contos populares, textos contemporâneos) que comportam agentes, mas não pessoas; isto é, que se admita que a ‘pessoa’ não é mais do que uma racionalização critica imposta por nossa época a puros agentes narrativos.” (BARTHES, 2009: 45)
Quando contemplamos esse horizonte “actancial” da estruturação coerente do discurso narrativo (portanto, nos modos como esta estruturação das funções atribuídas aos “actantes” naquilo que eles realizam no plano da história), não podemos restringir essa dimensão dos personagens a critérios puramente miméticos da verossimilhança de sua apresentação - no sentido de ancorar as situações em que atuam a um horizonte humano de compreensão: a apresentação dos personagens, que é sempre subsidiária das funções de evolução da história, nos é oferecida sempre como um conjunto de balizas através das quais podemos nos relacionar com as situações narrativas, do ponto de vista de sua evolução temporal - mas também na perspectiva de determinados outros valores de sua identificação para nosso interesse, enquanto leitores ou espectadores.
David Brooks e Aaron Sorkin, "What's Character Got to Do With It?
Aspen Institute (2016) - até 2:30
3. De certo modo, isso nos reconduz a uma exploração desta segunda grandeza funcional das principais unidades do discurso narrativo – no modo como a análise estrutural da narrativa em Barthes a delimitou, na forma dos “índices”: com isto, podemos nos situar melhor nos horizontes de compreensão postos em jogo, a partir da função na qual os agentes reforçam, num plano agora paradigmático de associação aos tipos de ações que eles cumprem na intriga, aquela lógica das funções associada à pura sucessão conseqüencial das ações, tomada como grandeza sintagmática de sua evolução. Ao designar essa segunda ordem das funções narrativas, é assim que Barthes se reporta aos “índices”:
“Quanto a segunda grande classe de unidades narrativas (os índices), classe integrativa, as unidades que aí se encontram têm em comum o fato de não poderem ser saturadas (completadas) a não ser no nível dos personagens ou da narração (...). Dizer que Bond está de guarda em um escritório cuja janela aberta deixa ver a lua entre grossas nuvens que passam é indexar uma noite de verão tempestuosa, e essa dedução da mesma forma é um índice atmosferial que remete ao clima pesado, angustiante, de uma ação que não se conhece ainda.” (BARTHES, 2009:35)
De modo a não ficarmos situados em demasia a ilustrações desta outra ordem das funções narrativas que ainda ilustram fortemente a questão dos níveis “sintáticos” da sucessão das ações (como é o caso das várias situações de perseguição e fuga ilustradas ao longo do curso aqté aqui), sugiro que avancemos para casos menos paradigmáticos de uma estruturação “proairética” das ações (como é o caso da seqüência de Bullit, adotada até aqui) para então descobrirmos outras instâncias de situações narrativas que são funcionalizadas não apenas pela promoção de uma maior intensidade e continuidade de sua apresentação, mas também pelo fato de que engajam nesta mesma evolução o lugar adequado dos agentes - e especialmente aquilo que eles aportam para outras ordens da significação narrativa de seqüências discursivas.
Portanto, para além de serem perfeitamente “consecutivas” e “conseqüenciais”, por exemplo, há outros aspectos desta declinação sucessória das ações que merecem ser destacadas aqui - já que elas remetem nossa atenção para um aspecto da estruturação tópica do discurso narrativo colocada para além dessa sua ordenação mais estritamente temporal. Destaquemos, de saída, a dimensão “volitiva” que orienta as disjunções que, por seu turno, fazem nascer o horizonte de uma proairese – enquanto elemento que promove, pela conduta de um agente, a sucessão narrativa: para além de orientar o sentido disjuntivo e resolutivo das ações, esta mesma estrutura proairética da situação narrativa é auxiliar na constituição de uma outra dimensão das ações, que deve ser explorada em separado.
Em sua análise estrutural, Barthes identifica esta outra funcionalidade do discurso narrativo com a promoção – seja expressa ou subentendida – da informação sobre o perfil de disposições dos agentes, assim como acerca de suas eventuais motivações de conduta (isto sem contar a ordem das atmosferas ou ambiências que circundam e qualificam a mesma ação). E nelas identifica, como no caso das funções (e de seus sub-títulos de “núcleos” e “catálises”) duas distintas grandezas, igualmente discriminadas, seja pelo caráter mais ligado à importância de sua qualificação (os “índices” propriamente ditos), ou pelo seu aspecto de mera clarificação das ações, na relação com sua identificação na sucessão lógica dos eventos (chamadas de “informações”).
“...pode-se (...) distinguir índices propriamente ditos, remetendo a um caráter, a um sentimento, a uma atmosfera (por exemplo, de suspeita), a uma filosofia, e informações, que servem para identificar, para situar no tempo e no espaço.” (BARTHES, 2009: 35)
4. Para esse fim, precisaríamos sair dos universos exemplares com os quais temos identificado a questão da evolução narrativa e seus aspectos de constituição estruturalmente isotópica (a saber, as situações de intensidade física das ações, como em perseguições, lutas ou quaisquer outros tipos de confrontação mais dependentes de uma necessária “corporificação” das situações) para nos encontrarmos com outras formas de construção do antagonismo igualmente definidoras dessa economia em que se articulam uma estruturação “proairética” dos segmentos narrativos e as “estruturas actanciais” - nas quais se incluem, agora de modo necessário e indispensável, os agentes da história. Neste caso, optamos por esses dois pequenos mas significativos planos-seqüência de uma conhecida série de ficção televisiva do final do último século.
The West Wing – “Crackpots and these women” (1999) – Aaron Sorkin/Anthony Darzan
Especialmente na interação verbal entre as personagens de Toby Ziegler e do presidente Josiah “Jed” Bartlet, pode-se ressentir que o diálogo mantido entre eles – por exemplo. durante um jogo de basquete no fim de um dia de expediente na Casa Branca - não serve apenas para representar a condição dinâmica da eventual troca argumentativa entre ambos, mas delimita igualmente (por sugestões de uma atmosfera mais “agônica” dessas trocas) os “espaços actanciais” próprios a cada uma dessas personagens, especialmente se pensarmos nesta figura da “actância” como aspecto da organização estrutural do universo das ações narradas - portanto, menos na perspectiva da identificação com os personagens concretos da história, mas com o dos “índices” pelos quais a presença dos agentes nos permite compreender a ação como portando determinados valores de sentido para a compreensão de vários aspectos do universo tópico da história.
“Para começar, uma unidade pode pertencer, ao mesmo tempo, a duas classes diferentes: beber um uísque (no hall de um aeroporto) é uma ação que pode servir de catálise à notação (cardinal) de esperar, mas é também e ao mesmo tempo o índice de uma certa atmosfera (modernidade, descontração, lembrança, etc.); dito de outra maneira, certas unidades podem ser mistas.” (BARTHES, 2009: 36)
The West Wing – “Five votes down” - Aaron Sorkin/Michael Lehmann (1999)
Quando contemplamos as duas seqüências desse seriado aqui exibidas (e que, não casualmente, são perfeitamente consecutivas, abrindo, na forma de teasers, os 4o e 5o episódios de sua primeira temporada), descobriremos uma importante implicação que nelas se verifica entre a dinâmica narrativa das ações e o plano actancial de sua atualização: poderemos então imaginar que as conversas entre esses dois agentes da fábula de The West Wing se dá em torno de um certo objeto que ambos disputam na prática – e que assume a forma de um “valor” ou “sentido” das interações que eles mantêm, pelo qual a atuação do presidente é avaliada por aquele que é responsável por configurar um aspecto de sua imagem política para o público (seja no âmbito da entrega de um discurso público ou do comportamento assumido pelo presidente em um aparentemente anódino jogo de basquete, a fim do expediente de trabalho).
5. Como acréscimo a todos esses pontos tratados até aqui sobre a dimensão propriamente funcional da exposição da conduta dos agentes para a sucessão das ações no discurso narrativo, consideremos finalmente a questão das “estruturas actanciais”, a partir desta pequena aula sobre a construção de personagens antagonistas - especialmente em histórias que dependem de um tal perfil mais pronunciado da oposição entre valores da conduta, de acordo com a função que podem cumprir na formulação de uma grande narrativa (neste caso, partindo de uma das mais recentes adaptações fílmicas do universo dos quadrinhos de super-heróis):
Lessons from the Screenplay – “The Dark Knight, creating the ultimate antagonist” (2016)
Voltando-nos ao caso de The West Wing, há uma igual relação dual de “contrato” e “sanção”, que atravessa o exercício do discurso presidencial, de um lado ao outro de sua realidade (ele foi demandado pelo presidente ao seu escritor; uma vez consumado, ele se constitui para sua execução a partir das marcas que Toby Ziegler anseia que o presidente respeite, em sua performance), aspecto este que define os papéis actanciais destes dois personagens na economia da história.
Algo de mais expressamente ligado ao desenho de caráter das personagens acontece na seqüência da partida de basquete, pois o personagem de Toby Ziegler assume um discurso sobre o caráter do presidente, o que desloca a narração do âmbito das ações do jogo para o da disputa sobre essa interpretação sobre o perfil presidencial. Ugo Volli identifica nesta relação entre agentes uma dimensão fundamentalmente “comunicacional” da organização das ações no discurso narrativo:
“Esta ‘comunicação’ (a ser entendida em um sentido muito mais amplo em relação ao que usamos até aqui como ‘circulação’ de valores) consiste no fato de que um destinador transmita alguma coisa a um destinatário: por exemplo, mandar realizar determinada ação, ou o prêmio que isto lhe alcançará. O destinador, em suma, é aquele que quer que a ação seja realizada e no final certifica o seu sucesso, e o destinatário é aquele que se obriga a desempenhá-la.” (VOLLI, 2007: 119).
Essa seqüência do jogo de basquete em The West Wing nos ilustra um aspecto importante do modo como a estrutura proairética das ações nos favorece a fixar os domínios ou papéis actanciais próprios aos personagens da seqüência: uma vez dada sua estrutura tópica mais fundamental (definida pelo eixo temáticos do jogo que a equipe dos assessores performa), o elemento que nos interessa aqui é aquele de um súbito deslocamento da sucessão do jogo e a valorização do desenho de caráter dos agentes - seja no plano do discurso de Toby Ziegler ou no das atitudes posteriores do presidente.
Neste caso, conforme a seqüência vai evoluindo nas diversas trocas de diálogos entre personagens, devemos pensar se esta evolução e variação não está também a serviço de uma melhor apresentação da estrutura actancial global do episódio, neste plano preciso em que se define como o sistema oposicional dos valores (psicológicos, de intenção, de caráter) próprios a cada uma das personagens do episódio.
“Entre o destinador e o destinatário está em jogo um objeto, concreto ou abstrato, que tem que ser transmitido ou comunicado. Em cada história, porém, esse objeto entra em relação antes de tudo com um sujeito para o qual ele tem valor, que luta para obtê-lo. A performance consiste nesta tentativa (...). Finalmente, deve-se levar em conta que a empresa do sujeito não é, em geral, solitária, mas exige circunstâncias favoráveis (que geralmente são obtidas por causa da competência), isto é, de adjuvantes animados ou inanimados, e geralmente deve enfrentar um obstáculo, trate-se de um adversário ou oponente em carne e osso, ou de dificuldades mais impessoais, por exemplo, devidas ao ambiente (um bosque, uma montanha, o mar) ou à meteorologia (uma borrasca, o gelo).” (VOLLI, 2007: 119).
Assim sendo, a estrutura na qual estes diferentes eixos temáticos se articulam, no decorrer da seqüência em questão (ou seja, o modo como a isotopia da mesma é efetivamente construída), pode ser explanada não apenas pela relações proairéticas que instaura nas duas seqüências do embate entre o presidente e aquele que escreve seus discursos (de aberturas e fechamentos de possibilidades disjuntivas, no vetor puramente seqüencial da história), mas também pelo modo como melhor define os agentes narrativos, através das continuas variações de focalizações do plano-seqüência nas personagens que evoluem fisicamente em cena, tudo se passando através dos diversos diálogos que elas mantêm entre si.
6. Tudo isto ilustra o fato bem importante de que as estruturas actanciais assim definidas como uma importante dimensão dos processos cooperativos de leitura pelos quais o intérprete atualiza o texto em sua multiplicidade de aspectos, não posem ser facilmente separadas dos processos pelos quais atualizamos estruturas discursivas e narrativas de uma historia : fixar o caráter dos agentes é algo que se faz, no ato mesmo de estipular a estrutura discursivo-tópica de uma narrativa - em suma, ainda que os caracteres vivam na narrativa a serviço da fábula, como nos lembra Aristóteles, é por outro lado bastante difícil, senão impossível, imaginar que possa haver alguma história minimamente significativa na ausência de seus respectivos agentes.
“A verdadeira dificuldade levantada pela classificação dos personagens é o lugar (e portanto a existência) do sujeito em toda matriz actancial, seja qual for a fórmula . Quem é o sujeito (o herói de uma narrativa? Há ou não há uma classe privilegiada de atores? Nosso romance habituou-nos a acentuar de uma maneira ou de outra, por vezes retorcida (negativa), um personagem entre outros.” (BARTHES, 2009: 47)
Para Umberto Eco, por exemplo, esta conjunção entre a organização actancial do universo da história e de sua estrutura discursiva (tópica e isotópica) é, inclusive, um dos elementos que nos permite constituir as bases do processo cooperativo pelo qual o leitor vai atualizar a trama, nos processos de leitura. Assim sendo, um aspecto decisivo dos processos em que o leitor atualiza uma estrutura discursiva (estabelecendo um topic e uma isotopia), assim como as lineariza em seqüências narrativas, é o conjunto de hipóteses que este leitor-modelo pode lançar, neste contexto, sobre o papel actancial das personagens envolvidas na fabula estabelecida, tendo em vista a formulação das macroproposições narrativas.
Para além disto, é necessário que sejamos capazes de determinar a natureza mesma das ações, em um aspecto de sua efetuação que não aquele próprio dos agentes – tomados enquanto figuras empíricas de “personagens” da ação - mas a do caráter, por assim dizer, perspectivo dos segmentos narrativos (são eventos que ocorrem como fatos objetivos, são ocorrências que se passam na lembrança de um agente), além do fato de que exprimem uma posição temporal do discurso na sua relação com a ordem temporal da historia (aspecto este que deixaremos para elaborar mais à frente).
“Quando lemos Noventa e Três, de Hugo, a que ponto do romance decidimos, sobre explícitas e deliberadas declarações do autor, que nele se conta a historia de um indivíduo grandioso, a revolução, voz do povo e voz de Deus, que se esboça contra o próprio oponente, a reação ? (…). E quando é que acontece que, uma vez compreendido isto o leitor renuncia a caracterizar os personagens, algumas ‘históricas’ e outras fictícias, que povoam o romance, além do limite do memorizável?” (ECO, 1986 : 152).
Nestes termos, quando examinamos em retrospecto aquela seqüência do diálogo entre Sam Seaborn e Toby Ziegler, após o discurso presidencial, e a avaliamos no contraste com o comportamento deste último em face do presidente Bartlett, aquele plano-seqüência mobiliza nossa atenção para o caráter respectivo de cada um destes personagens, na sua relação com este segmento tópico da discussão sobre a intervenção improvisada do presidente em seu pronunciamento – sendo que o peso do personagem de Toby Ziegler é mais proeminente neste aspecto do que o de seu auxiliar, já que é em torno de seu incômodo pessoal com esta iniciativa do presidente que esta tópica da seqüência vai ser desenvolvida, nas interações subseqüentes entre os dois, mais à frente (ao passo que Sam Seaborn apenas avançará neste segmento em outra interação com um membro da equipe a respeito de certas incongruências temáticas do discurso presidencial).
“ …observaremos de pronto que, enquanto uma armação actancial se apresenta – já como arsenal de enciclopédia, ainda antes que seja realizada num texto – como um sistema de oposição (…), uma estrutura ideológica (seja a nível de competência enciclopédica ou de atualização textual) apresenta-se como código em sentido próprio, ou seja, como sistema de correlações. Poderíamos até dizer que uma estrutura ideológica se manifesta quando conotações axiológicas aparecem associadas a papéis actanciais inscritos no texto. É quando uma armação actancial surge investida de juízos de valor e os papéis veiculam oposições axiológicas domo Bom vs. Mau, Verdadeiro vs. Falso (ou também Vida vs. Morte ou Natureza vs. Cultura) que o texto exibe em filigrana a sua ideologia.” (ECO, 1986 : 153).
Estas duas últimas ordens de formulação do texto de Eco apontam para dois diferentes tipos de problemas associados à importância dos papéis actanciais na economia discursiva da narratividade: no primeiro caso, trata-se da relação entre os valores actanciais inscritos a cada um dos agentes da história; o segundo, o da relação entre estas posições e um valor predominante das ações no universo narrado. São questões que apontam para diferentes aspectos do significado axiológico (isto é, valorativo) da organização discursiva da narratividade: elas concernem a uma multiplicidade de questões derivadas da categorização do “discurso” – ou da “enunciação” - nas formas narrativas, algo que examinamos preliminarmente em sessões anteriores, mas que precisaremos discutir com vagar, na próxima sessão do curso.
Referências Bibliográficas :
BARTHES, Roland. “Introdução à análise estrutural da narrativa”. In : Análise Estrutural da Narrativa : pp. 19,62 ;
ECO, Umberto. “Estruturas actanciais e ideológicas”. In: Lector in Fabula: pp. 151,162.
Leituras Adicionais :
BARTHES, Roland. Äs sucessões de ações". In: A Aventura Semiológica: pp.153,166;
VOLLI, Ugo. “Histórias”. In: Manual de Semiótica: pp. 91,132.
Próximas Leituras :
GENETTE, Gérard. “Voz”. In : Discurso da Narrativa : pp. 211, 261;
VOLLI, Ugo. “Enunciação”. In: Manual de Semiótica: pp. 133, 144.
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