Notas da 4a sessão do curso (07/05): do topic à isotopia (U.Eco e U. Volli)

Introdução às Teorias da Narrativa (GEC 114)
Aula no 3 (07/05/2025)

 

Isotopias Discursivas e Narrativas: matrizes da disjunção como princípio composicional das seqüências textuais (U.Eco e U.Volli) 

 

1. Na sessão anterior do curso, identificamos, com o auxílio dos textos de Umberto Eco e Boris Tomachevski, os modos como o processo de atribuição de um tema ou topic (concebido como o “assunto” de uma história) constitui uma espécie de estrutura mais geral da significação discursiva (não presente apenas em narrativas, mas na ordem mais genérica do sentido), conferida pela interação entre estruturas discursivas (seja qual for a matéria semiótica de sua composição) e os horizontes da leitura (menos identificadas com as entidades empíricas do leitor, mais como conjunto de competências interpretativas, ou “enciclopédicas”): 

 

"Para entender um artigo de jornal sobre política dos Estados Unidos, é preciso saber quais são nessa fase os inimigos da América, quais os aliados, quem é o presidente, e assim por diante. A mesma exigência se apresenta, de maneira maior ou menor, para compreender um filme, uma poesia ou um tratado científico. Esse complexo de conhecimentos e crenças sobre o mundo compartilhado em um certo tempo e em certa sociedade, que denominamos enciclopédia daquele falante ou grupo de falantes (e que pode naturalmente ser em parte falso ou inexato), é o fundo de sentido para cada evento comunicativo.Trata-se de um conjunto em parte desordenado de narrações, definições, conhecimentos factuais, imagens, lugares-comuns, listas de coisas e de possibilidades que é quase impossível respresentar-se de maneira ordenada e coerente.” (VOLLI, 2007: 84,85)    


A depender dos tipos de pacto interpretativo que o texto contrate com seus horizontes de leitura, esse topic pode ser dado de saída ou precisa ser inferido pela atividade mais expressa da instância da recepção. E como essa diferença se estabelece? No caso de textos mais pautados pela necessidade pragmática de maior explicitude da condução enunciativa do texto (como aquilo que caracteriza o discurso jornalístico, por exemplo, na abertura de um tele-jornal), estamos na instância da primeira alternativa (quando o locutor invariavelmente anuncia “Boa noite, este é o Jornal Nacional”, resolvendo assim, logo de início, a questão da explicitação semântica do discurso informativo); já em casos que examinamos anteriormente, como em “Fantasmas”, trata-se de uma operação que não necessita (e eventualmente não deve) ser explicitada de imediato, por razões variadas – ainda que a exposição de um titulo, ao fim, sirva como uma marca de topic, como no exemplo a seguir: 


C’était un rendez-vous , dir. Claude Lelouch (1976)

Pois bem, essa totalização semântica através dos atos pragmáticos de tematização pede contudo que a unidade textual das narrativas seja apresentada a partir de um princípio de coerência, como uma qualidade interna do próprio texto – de tal modo que nenhum topic pode se fixar se o texto mesmo não exibir previamente determinados sinais dessa sua organização interna: neste percurso em que interpretamos uma história, nela fixando um sentido inicialmente temático de sua significação, demandamos um tipo de comportamento do próprio texto que certos teóricos da narrativa designaram como sendo sua “isotopia”.

 

Com esse termo, designa-se a noção de que uma narrativa implica na recorrência de certas figuras de significação (ligadas ao espaço da história, à natureza das ações narradas, aos caracteres ou agentes que a compõem, dentre outras coisas) e que garantem uma determinada regularidade, uniformidade e continuidade à experiência da leitura ou da fruição das histórias: mediante tal apresentação “isotópica” ou coerente do discurso narrativo, compreendemos sem maiores ambigüidades toda uma série de disjunções, modificações ou deslocamentos de sentido que acontecem no âmbito semântico ou sintático de quaisquer segmentos da história. 

 

“Greimas define a |isotopia| como ‘um conjunto de categorias semânticas redundantes que possibilitam a leitura uniforme de uma história’. Portanto, a categoria teria a funções de desambiguações transfrástica ou textual, mas, em várias ocasiões, Greimas aduz exemplos que se referem também a frases e a sintagmas nominais.” (ECO, 1986: 73,74) 

 

2. À luz dos exemplos com os quais tratamos essa questão do topicna sessão anterior e nesse exemplo de C’était um Rendez-Vous, dois modos fundamentais de nos referirmos a essa “dialética” entre topic e isotopia emergem com maior força: no primeiro deles, as possíveis apostas interpretativas que podemos fazer sobre o topic da seqüência filmada por Claude Lelouch, dependeriam todas do conjunto de saberes postos em jogo (ou apenas supostos) para a compreensão de seus elementos - como, por exemplo, a constância do mesmo ponto de vista, a ausência de cortes ou de recursos de aceleração ou retardo da imagem: uma dessas fontes de saberes de nossa compreensão derivaria das normas de certos gêneros narrativos (como filmes policiais ou de corrida), auxiliando-nos a enquadrar o topic e situando o nível da “história” desse segmento. 

 

Grand Prix, dir. John Frankenheimer (1966)

 

The French Connection, dir. William Friedkin (1971)

Em segundo lugar, podemos igualmente avaliar esse mesmo exemplar através de seu eixo “sintagmático” – a saber, tendo como parâmetro os modos ou estilos de procedimentos narrativos, centrados na valorização expressa do ponto de vista e da modulação da sucessão ininterrupta das ações da cena: em Fantasmas, esse nível da significação narrativa vai sendo introduzido com vagar, à medida em que acompanhamos a evolução da interação das vozes de fundo da cena que governa nossa atenção, a partir de um único e contínuo plano, no qual observamos a movimentação de carros e pessoas em um posto de gasolina à noite, até o momento em que uma personagem nomeada por essas vozes emerge dentro de um carro saindo da esquina em que esse posto se situa.

 

Mas, se desejarmos ilustrar estratégias da definição de um topic, podemos nos centrar em características de outros determinados gêneros narrativos – especialmente aqueles associados ao “absurdo”, como é o caso de certas comédias: em Naked Gun 2 ½, dirigido por David Zucker, o caráter absurdo de algumas das situações de desfecho narrativo não nos inquieta, mesmo com sua patente e continuada incongruência lógica (por exemplo, ao vermos alguém cair de um prédio, ser salvo por um toldo, mas em seguida ser atacado por um leão que emerge do nada); pelo contrario, ela é compreendida e avaliada como nos agradando sem maiores inquietações pelo modo como encena significativamente essas situações absurdas através de princípios de coerência interna, que são próprios ao gênero cômico.

 

Naked Gun 2 1/2, dir. David Zucker (1991)

 

Concluindo, portanto: 

 

• Como vimos, o processo de atribuição de um assunto ou topic de qualquer segmento textual constitui uma espécie de aventura interpretativa proposta por uma estrutura discursiva desta significação (não presente apenas em narrativas, mas em toda ordem textualizada do sentido, desde a mais ordinária conversação); 


• Por sua vez, a possibilidade desta estipulação semântica sobre temas discursivos é conferida pela interação que a própria superfície do texto propõe para o exercício das capacidades interpretativas do leitor – de tal modo que a coerência que se estabelece nas histórias deve ser uma propriedade semântica do texto propriamente dito. Umberto Eco enuncia esses mesmos pontos, da seguinte maneira: 

 

“O topic é uma hipótese que depende da iniciativa do leitor, que a formula de uma maneira algo grosseira, sob forma de pergunta (‘de que diabos estão falando?’) que se traduz, por conseguinte, como proposta de um titulo tentativo (‘é provável que estejam falando disto’). Portanto, é instrumento meta-textual que o texto pode tanto pressupor quanto conter explicitamente, sob a forma de marcadores de topic, títulos, subtítulos, expressões-guia. Com base no topic, o leitor decide magnificar ou narcotizar as propriedades semânticas dos lexemas em jogo, estabelecendo um nível de coerência interpretativa, chamada isotopia.” (ECO, 1986: 74) 

 

Neste ponto, ao percorrermos uma história, através das apostas inferenciais que fazemos sobre o significado global que elas aportam, devemos contar com um aspecto do comportamento textual que define aquilo que os teóricos da narrativa (especialmente aqueles centrados sobre seus princípios de organização textual) designam como a “isotopia” deste texto – instância distinta mas pragmaticamente complementar àquela do topic, devendo assim ser tratada à parte, a partir de agora. 

 

3. Em todo caso, já vimos que a passagem do topic para a isotopia implica um movimento que começa pelas dinâmicas interpretativas que os textos instauram com seus universos de recepção, em vista de um tema, indo em direção a uma certa imanência da organização textual, em seus modos de apresentação: em termos figurados, diremos que a isotopia caracteriza a dimensão de sentido textual no qual as formas discursivas (as narrativas aí incluídas) assumem um comportamento semântico condizente (ou não, como veremos em alguns casos a seguir) com certas expectativas que podemos assumir, enquanto leitores, na medida em que percorremos sua superfície, passo a passo. O exemplo seguinte ilustra esta definição de “isotopia”, precisamente por implicar um aspecto da coerência não integralmente ligado à narrativa, mas ainda assim ilustrativo dos jogos entre a coerência textual e a enciclopédia do leitor: 

 

Bonnie Tyler, Total Eclipse of the Heart (1983) - dir. Russell Mulcahy 

A junção de elementos incongruentes na exposição que é feita nessa peça nos faz pensar na singularidade das operações discursivas a que as seqüências visuais estão usualmente submetidas, em casos como esse: não podemos tentar submeter a coerência que lhe seria própria a algum princípio narrativo de sua organização que se originasse, por exemplo, da sequência “lírica” da canção (ou seja, do conteúdo poético que a voz de Bonnie Tyler entoa, ao recitar melodicamente o texto da canção), pois a junção entre esses dois elementos não configuraria uma unidade semântica mínima para nossa compreensão – em suma, se compreendemos inglês, a letra da canção não se coliga com o topic da seqüência visual do clip

 

Por outro lado, outras matrizes de topicalização lhe confeririam outro tipo de status - como, por exemplo, a de referência temática a outros universos narrativos que não os do assunto propriamente dito da canção: em última instância, podemos atribuir esta isotopia da peça às relações de revezamento e redundância que ocorrem entre o regime das imagens (especialmente atribuído pela encenação e pela montagem) e a modulação rítmica do andamento e de volume dos crescendi musicais (subtraída uma vez mais a porção lírica da canção); se alguma relação de redundância pode ser acionada na compreensão que fazemos desse clip, ela se instaura menos no revezamento entre o tema lírico da canção e a fábula das imagens (portanto, se caracteriza menos pelo eixo paradigmático dessa relação) e bem mais nas proximidades que estruturam a combinação das imagens - pela agilidade da montagem cinematográfica e pelas atmosferas da encenação, uma vez rebatidas sobre as intensidades da porção musical da canção. 

 

No caso do vídeo que ilustra a canção de Bonnie Tyler, operam distintos modos de se configurar a isotopia própria dessa representação audiovisual da canção: há aqui a sugestão de uma história, com acontecimentos absurdos (ou talvez oníricos, como se emergissem do sonho da protagonista), mas atravessados de uma determinada coerência que se institui pelo encadeamento das seqüências e por determinados princípios de redundância e de disjunções de eventos que ocorrem na relação da cantora/personagem (na medida em que ela é encenada como uma espécie de professora de um internato mal-assombrado), ainda que nada disso coincida com o tema expresso pelo texto lírico da canção (ao menos para aqueles cuja parte da enciclopédia interpretativa envolva o domínio da língua inglesa cantada). 

 

Tratando-se de pensar a isotopia correspondente a este vídeo, nos reportamos aos princípios através dos quais os elementos configurados nesse texto audiovisual se deixam atravessar dessa propriedade imanente de coerência (em vários de seus níveis de manifestação), no sentido em que tal coerência permita alguma orientação dos percursos de sentido que construímos através de atos de leitura. Ao fim do capítulo sobre “estruturas discursivas”, Umberto Eco define a isotopia como um “termo guarda-chuva”, necessariamente cobrindo uma variedade de fenômenos associados a tais princípios da semântica textual que conduz ou resulta de processos de fixação de um topic

 

“De fato, |isotopia| se refere sempre à constância de um percurso de sentido que um texto exibe quando é submetido a regras de coerência interpretativa, embora as regras de coerência mudem, conforme queiramos caracterizar isotopias discursivas ou narrativas, desambiguar descrições definidas ou frases e operar co-referências, decidir o que fazem determinados indivíduos ou estabelecer quantas histórias diferentes podem originar-se da mesma ação dos mesmos indivíduos” (ECO, 1986: 83) 

 

4. Recapitulemos nossa exposição até aqui: de modo a estipularmos um topic ou reconhecermos um universo de referência, (como um “mundo possível”), em qualquer extensão textual na qual sua emergência possa nos interessar (seja a de um termo simples, uma sentença, uma seqüência de ações ou acontecimentos, um episódio ou uma vida inteira), necessariamente implicamos por nossas apostas inferenciais que a superfície do texto (uma vez mais, qualquer que seja sua materialidade semiótica ou sua extensão) assuma um comportamento condizente com tais hipóteses de leitura: assim sendo, a “isotopia” é a característica que a exposição textual assume, como traço de uma determinada unidade ou coerência de percursos de sentido, em vista dos horizontes de consolidação de um topic.

 

Nos exemplos que abordamos até aqui, essa dinâmica - ou dialética - entre topic e isotopia é marca característica das interações entre o texto e seus horizontes de compreensão ou recepção: mediante determinadas apostas que fazemos sobre o assunto “perseguição automobilística” (origine-se ele do paradigma de comparação com outros exemplares símiles ou então do eixo no qual apreendemos a sintaxe das ações que ele apresenta), podemos aguardar que o segmento de C’était un rendez-vous possa nos exibir as marcas isotópicas que confirmam uma tal hipótese sobre o tema; quando tematizamos o clip da canção de Bonnie Tyler como representando uma determinada situação narrativa (um sonho agitado de uma professora de internato masculino, quando esta imagina seus alunos em situações absurdas, antes de ser apresentada a eles, na manhã seguinte), aguardamos que o texto venha a comprovar essas apostas - algo que decorrerá de uma organização previamente isotópica ou coerente dos materiais significantes do vídeo em questão. 

 

Em suma, topic e isotopia, mesmo constituídos como conceitos distintos de uma teoria do discurso narrativo somente assumem sua validade na explanação do funcionamento discursivo das histórias, ao serem jogados em sua relação de reciprocidade complementar: na economia integral das relações entre a superfície textual e sua atualização feita a cada ato de leitura não há sentido em atribuir aos atos interpretativos de tematização qualquer importância que não decorra de (ou faça disparar) comportamentos textuais coerentes - ou isotopias correspondentes a tais horizontes de compreensão. 

 

Igualmente importante - especialmente para o caso da “isotopia”, com a qual nos concernimos nesse momento - é o fato já recordado anteriormente de que tal dialética entre os dois conceitos não implica nenhuma extensão predeterminada do texto e de sua conformidade com os atos de definição do topic, em termos da exibição de marcas de “constância isotópica”: de modo praticamente invariante, Boris Tomachevski, Umberto Eco e Ugo Volli discorrem sobre a definição do topic como correlacionada a segmentos textuais tão reduzidos como a de um termo simples (um nome, um substantivo), assim como associados a inteiras cadeias discursivas entrelaçadas solidariamente (grupos de sentenças compondo episódios mais vastos ou obras integrais), tudo isto acontecendo por princípios de isotopia de toda ordem (aspectos de coerência semântica, fonética, prosódica, estilística, retórica, sintática, inferencial e, por que não, também narrativa). 

 

“O topic pode (...) resumir só um segmento do texto (por exemplo, o topic da primeira parte da história de Chapeuzinho vermelho será ‘uma menina vai visitar a vovó para levar-lhe doces e no bosque encontra um lobo’), ou – leitura conclusiva – pode procurar cobrir o curso inteiro dos acontecimentos descritos (‘é uma narração da advertência de como não se deve dar atenção a desconhecidos’; ‘é a história da eterna luta entre o Bem e o Mal’; ou, ainda, ‘é a representação dos conflitos psicológicos de uma adolescente que sofre do complexo de Édipo’)”. (VOLLI, 2007: 83) 

 

5. Nesse ponto, devemos nos recordar que, de acordo com Eco, o topic não é uma decisão de leitura arbitrária daquele que experimenta uma seqüência textual num ato de leitura, mas um percurso de sentido imanente à organização textual (uma vez mais, seja qual for o tipo, gênero ou materialidade significante das formas discursivas): em suma, a isotopia é uma propriedade semântica inerente ao texto - e que é freqüentemente liberada como sinal da coerência com a qual a exposição do discurso faz corresponder (ou não) o conteúdo da aposta interpretativa sobre um topic. Do mesmo modo que no caso deste último, também o conceito de “isotopia” aplica-se igualmente a uma extensão considerável de fenômenos de coerência textual, conforme o segmento selecionado para os processos interpretativos de tematização – desde termos simples até obras ou séries de obras inteiras. 

 

Por isso mesmo é que Eco aborda o conceito de “isotopia” a partir de sua concepção como “termo guarda-chuva”, na medida em que recobre fenômenos de semântica textual muito variados, todos eles atravessados pela exigência de coerência de nossos percursos de leitura. Também por essa razão é que ele propõe uma tipologia não exaustiva das “isotopias discursivas”, conforme os princípios da coerência se segmentem no nível da frase ou para além da mesma, e ainda de acordo com o recorte no plano “paradigmático” (relativo aos conceitos de significado associados às operações textuais) ou “sintagmático” (ocorrendo no nível da articulação entre os elementos da frase e do discurso): é assim que emergem as primeiras categorizações de Eco sobre os princípios isotópicos que operam no nível discursivo – portanto, não ainda como operadores textuais da narrativa, mas já orientados para o importante sentido da disjunção nos dois grandes eixos de um percurso de sentido (o paradigmático e o sintagmático), a saber: 

 

“Trata-se |a isotopia| de uma característica intrínseca do texto, geralmente projetada como tal, que deve porém ser reconhecida pelo leitor pela operação pragmática da escolha do topic. Dado um enunciado, como ‘este tenor é um cão’, é possível, com base nas regras de sua enciclopédia, uma sobreposição semântica (ou amálgama). Segundo a acepção codificada de ‘cão’ como ‘mau cantor’ (devida a informação semântica que se encontra na enciclopédia, segundo a qual o cão é um animal que costuma produzir latidos desagradáveis) e aquela que define o tenor como um certo tipo de cantor, existe um ponto de ligação, de sobreposição entre os significados de ‘cão’ e ‘tenor’” (VOLLI, 2007: 86). 

 

No exemplo aludido por Volli, podemos dizer que o significado lexical de “cão” (aquele consagrado pelo dicionário, por exemplo, como segmentação de um universo semântico no interior do reino animal) é operado topicamente, a partir de um procedimento de disjunção, característico da figura retórica da metáfora: neste sentido, a condição na qual ele é tornado predicado de enunciados feitos sobre tenores caracteriza à perfeição a classe das “isotopias discursivas frásticas de disjunção paradigmática”, no modo como as define Eco; neste contexto, o que elas realizam é um deslocamento momentâneo (uma disjunção metafórica) do campo semântico de um termo simples (seu paradigma), no contexto de sentenças simples (frásticas), resolvidas por efeitos de redundância isotópica, dependentes do conhecimento enciclopédico do leitor (sem o repertório de compreensão de “cão” como “mau tenor”, não se compreende o sentido da expressão). Em contextos especificamente narrativos, por outro lado, esse recurso é particularmente útil na configuração de determinados efeitos de disjunção - por exemplo, aqueles próprios à incongruência cômica, ilustrada a seguir:  


Laerte Coutinho, Piratas do Tietê (1998) 

 

Examinemos, na prática, como a operação disjuntiva que esta tirinha efetiva resulta na isotopia que lhe é própria: é precisamente porque associamos o “chorinho”, pedido pelo chefe dos piratas no segundo quadro, com a lágrima que escorre de sua caneca/caveira no final, que experimentamos a graça deste episódio; ora, é evidente que esta mesma graça implica em um jogo dúplice, no qual inserimos a “reação” de um objeto de cena (o que configura uma disjunção paradigmática em si mesma, já que trata-se de um objeto inanimado assumindo comportamento próprio a seres vivos) como que literalizando o pedido do pirata ao garçom – ao invés deste personagem humano, é a caneca em forma de caveira que verte seu próprio “chorinho”, como se o pirata houvesse demandado isso especificamente a ela. Razões pelas quais a seqüência desta tirinha ilustra a categoria de disjunção discursiva descrita mais acima (“frástica paradigmática”). Veremos em sessões posteriores do curso que este deslocamento ou disjunção do sentido é uma operação mais característica da coerência semântica própria ao discurso narrativo, em especial. 

 

6. Estes aspectos da desambiguação semântica de um universo textual (quando efetivamos um sentido próprio da seqüência discursiva, determinando a função semântica desses segmentos), por sua vez operando no limite estrito da frase, também concernem ao modo como a estrutura sintática do enunciado é constituída, através de sucessivas disjunções, agora no plano sintagmático da combinação de seus elementos constituintes (e não apenas no da semântica dos termos simples): neste caso, ainda seguindo Eco, estamos diante das “isotopias discursivas frásticas de disjunção sintagmática” que realizam estas operações de requisição aos saberes do mundo possuídos pelo leitor, no plano da organização sintática, de modo a operar com a possível duplicidade de sentido de sentenças tais como aquela que Eco traz ao exame (“They are flying planes”), na qual é possível interpretar que o termo “eles” se refere aos “flying planes” ou a “pilotos” – ou ainda, mais decisivamente, se “flying” cumpre a função de verbo ou de adjetivo. 

 

“Na desambigüação dessa frase (...) a decisão fundamental (sempre dependente de prévia topicalização) consiste em saber se estamos falando de sujeitos humanos que fazem alguma coisa com os aviões ou de aviões que fazem alguma coisa. A este ponto cumpre pôr em atuação uma co-referência e estabelecer a quem ou a que coisa |they| (eles) se referem. Poderíamos dizer que a decisão co-referencial (sintagmática) decide sobre a escolha paradigmática que concerne ao sentido do verbo.” (ECO, 1986: 77) 

 

Outro exemplo da mesma classe de isotopias discursivas é conferido pela seguinte seqüência de enunciados, encontrada numa inscrição feita num banco traseiro de um ônibus interurbano: 

 

“Se eu acordar hoje, Deus estará comigo; se não, eu estarei com Ele”. 

 

Supondo-se que a junção de ambas confere um topic como o da relação de seu sujeito com o objeto de sua fé (a idéia mesma de “Deus”), sua isotopia se organiza em torno do significado que atribuímos ao verbo “acordar” – que é expresso na primeira sentença e mantido implícito na segunda: se compreendemos esse despertar como designando o estar vivo do sujeito enunciador, a disjunção que ocorre na relação entre este e Deus é da natureza de um paradigma (aquele conferido à relação entre “não acordar” e “não estar mais vivo”, por exemplo). Ainda assim, o contexto transfrástico no qual certas isotopias se manifestam nas sequências discursivas também faz disjunções no plano sintagmático - como resultantes daquelas que ocorrem no âmbito do significado verbal das sentenças: pois, ao compreendermos os dois estados expressos em cada uma delas (acordar ou não), o que se altera é a relação sintática do sujeito do enunciado com Deus – o que significa uma disjunção de ordem sintagmática na função exercida pelos dois termos entre si. 

 

Ao considerarmos precisamente este caso das “isotopias discursivas transfrásticas de disjunção sintagmática”, podemos ainda aduzir o seguinte exemplo, encontrado há tempos numa estrada, no caminho entre Belo Horizonte e Brasília – são duas placas de trânsito, postas lado a lado, cada uma com as seguintes inscrições: 

 

“Limite de estados entre Minas Gerais e Goiás”/”Somente ultrapasse com segurança”. 

 

O sentido coerente (portanto, isotópico) das duas proposições, que estão factualmente separadas entre si (mas que são articuladas pela sua contigüidade física, num contexto transfrástico), é estabelecido pela atividade da leitura - no modo como o verbo “ultrapassar” se aplica a ambas, por implicação ou suposição lógicas (se há um limite entre territórios, há portanto a iminência de sua ultrapassagem) e nas conseqüências que isso acarreta para a sintaxe que os dois enunciados articulam em conjunto. Neste último caso, a transposição da ação de ultrapassagem do último para o primeiro enunciado é introduzida como disjunção que se efetua no plano sintagmático da operação de explicitação semântica – através da admissão de que o cuidado que se requer é relativo ao limite entre os estados. 

 

Por fim, não é de todo impróprio supor que estas disjunções de tipo discursivo sejam também pensadas em sua dimensão propriamente narrativa, do ponto de vista de seus princípios isotópicos (isto é, de coerência textual): de fato, toda essa análise que fizemos das seqüências de Lelouch e de Stranger than Fiction poderiam ser perfeitamente assimiladas às caracterizações progressivas que Eco faz a seguir, quando ultrapassa o limiar da função das disjunções nas isotopias discursivas para explorar as operações da mesma ordem, no contexto mais estritamente narrativo. Mas estes serão pontos a serem explorados em nossa próxima sessão – quando avaliaremos as relações entre esse nível textual das operações narrativas e aquilo que as teorias poéticas designavam como espaços da “fábula” e da “intriga”. 

 

Referências Bibliográficas:

ECO, Umberto. “As estruturas discursivas”. In: Lector in Fabula: pp. 69,83; 

VOLLI, Ugo. “Estruturas”. In: Manual de Semiótica: pp. 55,88. 

 

Próximas Leituras: 

ECO, Umberto. “Estruturas narrativas” . In : Lector in Fabula : pp. 85,92; 

VOLLI, Ugo. “Histórias”. In: Manual de Semiótica: pp. 91,132.

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