Notas da 5a sessão do curso (14/05/2025): da intriga como isotopia narrativa (Barthes, Eco e Volli)

Introdução às Teorias da Narrativa (GEC 114)
Aula no 4 (14/05/2025)

Da Isotopia Discursiva às Sucessões de Ações: a intriga como função narrativa (R. Barthes, U.Eco e U. Volli)

1. Na sessão anterior, vimos que a isotopia de uma seqüência discursiva (mesmo aquelas não necessariamete narrativas), uma vez constituída na forma de um sistema de redundâncias de figuras semânticas (ligadas à lógica das ações, à sucessão de eventos, a lugares, objetos e pessoas representadas) seria a matriz de uma compreensão uniforme das expressões textuais. Nestes termos, os atos interpretativos, empenhados na geração de topics discursivos – como apostas hipotéticas ou “abdutivas” sobre o assunto dos textos – seria condicionado por (ou, em sentido inverso, capaz de ativar) um nível semântico imanente do texto, sendo este último definido como sendo sua “isotopia”, ou seja: a estruturação internamente coerente de vários dos elementos que constituem a ordenação semântica do texto.  

Até o momento, contudo, tratamos desse sentido internamente configurado e coerentizado do texto em sua dimensão genericamente “discursiva” – portanto, sem especificarmos os aspectos em que ele atualiza estruturas propriamente “narrativas” da representação de ações, dos agentes e dos mundos (ficcionais ou não) instituídos pela organização textual da história. Necessitamos, então, considerar que uma tal ordenação discursiva da seqüencia textual deve ser capaz de oferecer ao intérprete aquilo que Umberto Eco estipulou como uma “porção de fábula” – ou, por oura via, um discurso que não apenas orienta percursos genéricos de sentido (aquele que confere a uma tal coerência o aspecto de uma “isotopia discursiva”, conforme as classificações que Eco constrói, no plano frástico e transfrástico), mas também estabelecendo “um esquema fundamental da narração, uma lógica das ações, uma sintaxe das personagens e o curso dos eventos ordenado temporalmente” (ECO, 1986: 85), precisamente aquilo que Boris Tomachevski designara décadas antes como o conceito mesmo de “fábula”:

“Detenhamo-nos sobre a noção de fábula. Chama-se fábula o conjunto de acontecimentos ligados entre si que nos são comunicados no decorrer da obra. Ela poderia ser exposta de uma maneira pragmática, de acordo com a ordem natural, a saber, a ordem cronológica e causal dos acontecimentos, independentemente da maneira pela qual estão dispostos e introduzidos na obra.” (TOMACHEVSKI, 1970: 173)

É assim chegado o instante de examinar como se efetivam narrativamente, por exemplo, as “sucessões de ações” que caracterizam uma estrutura episódica elementar das histórias, a partir de sua constituição textualmente isotópica – o que, em termos de uma abordagem poética, implicaria precisamente em passarmos do plano da isotopia discursiva para o nível da fábula. Em suma, trata-se de especificar o caráter particularmente “narrativo” da representação discursiva das sucessões de ações, não apenas no plano de sua referência - característica genérica de qualquer discurso que seja empregado como uma sucessão de elementos e acontecimentos (como uma receita culinária, um cardápio de restaurante ou, como na ilustração a seguir, um manual de instruções para situações de emergência aérea), mas agora como percurso de sentido coincidente com uma “história” – em modalidades de disjunção que formulam um segmento de história (como numa sequência cômica)


British Airways safety video (2017)

2. Quando examinamos, no decorrer da última sessão, a estrutura desta disposição dos eventos narrados, a partir de princípios de coerência ou redundância isotópicas, nos fixamos sobre dois casos de uma possível atualização de topics - ambas implicando tipos de disjunções ocorridas no plano interno de sua organização coerente, e assim discriminadas: 

·      No plano sintagmático (sucessivo) das duas primeiras sequências de Stranger than Fiction, na qual a função de orientação da voz em off se modifica, de súbito, na medida em que o personagem da cena passa a notar sua presença como parte de seu mundo (o que rerienta nossas apostas interpretativas sobre a função desta voz no universo da história, ora como “narrador”, ora como “personagem”);

·      No plano paradigmático (associativo) da totalização do topic, quando nos damos conta que uma seqüência narrativa possivelmente característica de gêneros fílmicos de perseguição automobilística sofrem uma disjunção temática, apenas conjurada com maior explicitude na sua conclusão - com a apresentação de seu título, simultaneamente um “paratexto” e uma marca de topic (C’était un rendezvous).

Examinando as duas seqüências pelas quais ilustramos a identidade entre os conceitos de  topic e fábula, podemos implicar os movimentos disjuntivos que geram percursos discursivos da história – na medida em que se excluam ou se complementem mutuamente. Teríamos assim dois exemplos desse tipo de estruturação textual da coerência, gerando diferentes níveis da fábula (como definidas por Eco e Tomachevski):  

  • as duas primeiras seqüências de Stranger than Fiction situam-se no caso de uma “isotopia narrativa que gera versões exclusivas” da fábula, pois a disjunção que as estrutura (a diferença de função entre a voz da narradora e o nível da fábula) produz duas histórias que se conflitam (de um lado, a vida de Harold Crick, narrada pela voz; de outro, o drama da interação entre a mesma voz e o protagonista); 
  • no caso de C’était un rendez-vous, tal disjunção não implica contradição apenas entre as possíveis finalidades de uma perseguição, mas também a complementariedade possível entre todas elas – com especial ênfase naquela em que possivelmente menos se apostaria (a saber, a do encontro amoroso). Razão pela qual a seqüência de Lelouch ilustra o tipo de isotopias narrativas “geradoras de histórias complementares”

Como já vimos, então, nosso ponto de partida na exploração das peculiaridades da “isotopia narrativa” demanda que os segmentos textuais que a compõem se caracterizem como uma “sucessão das ações” – não apenas isto, mas que configurem uma ordem do discurso manifesta como segmento próprio de uma “fábula”, no modo como definida por Eco e Tomachevski: é nesta relação da sucessão de ações que mantemos viva a coerência textual desses segmentos, tornando-os segmentos de uma história que se conta – como, por exemplo, ao nos situarmos em face de eventos dotados de certa intensificação agônica, como as de uma perseguição automobilística, especialmente ilustradas por esse episódio das aventuras de um famoso espião da literatura e do cinema – logo na introdução dos acontecimentos de um de seus episódios: 

Quantum of Sollace (2008) – dir: Marc Forster

A manifestação textual deste segmento exibe as marcas mais proeminentes de uma constância e coerência semânticas (sua “isotopia” propriamente dita) que orienta e até facilita nossas apostas inferenciais sobre seu assunto, como ilustração mais perfeita de um encaixe entre a hipótese de um topic e os esquemas isotópicos de sua evolução – especialmente considerados os movimentos disjuntivos no interior da seqüência, na medida em que estes não implicam perdas significativas de informação semântica (mesmo com a intensidade rítmica que a montagem imprime ao episódio), mas apenas os desafios intrínsecos à própria fisicalidade da sucessão, especialmente guiada pela perspectiva de seus agentes (os desafios que se impõem, no decorrer da perseguição, os obstáculos que encontram pelo caminho e as resoluções que antagonistas, protagonistas e adjuvantes tomam para resolver a situação, já que o horizonte da eliminação física de um deles está devidamente sugerido). 

As peripécias automobilísticas de James Bond, fugindo de seus perseguidores por sinuosas estradinhas na região italiana de Siena, são organizadas interrnamente numa isotopia que não deixa margem de hesitação sobre seu devido topic – restando ao trabalho da narração estatuir as relações de coerência dessa situação, particularmente no que respeita seu desfecho (previsivelmente com o sucesso de seu protagonista), mas sobretudo em relação ao aspecto de sua motivação ou propósito, já que o início dessa aventura de Bond é um prosseguimento das ações traçadas no episódio imediatamente anterior da série (algo que se explicita apenas ao fim da seqüência inicial de Quantum of Sollace, quando Bond abre o porta-malas de seu carro). Neste momento, fica explícito (no mesmo modo da seqüência de Claude Lelouch) nosso reecontro – na condição de “leitores-modelo” da saga cinematográfica do herói de Ian Fleming – com o mesmo personagem a quem Bond encontrara ao final do episódio imediatamente anterior de suas aventuras no cinema:

Casino Royale (2006) – dir: Martin Campbell

Em claro contraste com esta sequencia narrativa, aquela de C’était un rendez-vous exprime alternativamente um jogo com as dificuldades impostas entre a estrutura discursiva na qual o topic é estabelecido pela leitura contínua, de um lado, e os modos de exposição isotópicos que a estruturam narrativamente, de outro - de tal modo que, no caso de Lelouch, é a compreensão mesma do topic que se modifica, pelo resultado das disjunções feitas no plano do enredo, à medida em que vamos avançando pelas ruas da cidade de Paris (até o arremate da seqüência, quando testemunhamos o encontro do casal, sublinhado pelo título atribuído ao segmento). Já em Quantum of Sollace, as disjunções que formam a isotopia propriamente narrativa da seqüência estão inscritas no tecido textual, no nível do “enredo” - e assim implicadas na estrutura semântica interna da representação de ações: são disjunções que presumem um pacto preliminar entre seu modo de apresentação e os horizontes de nossa compreensão média (aquela de um “leitor-modelo” que aciona esses níveis de articulação). 

De modo sintético, as disjunções da primeira seqüência (a de Lelouch) acontecem no intervalo pragmático entre a exposição narrativa e a fixação do topic, ao passo que as da segunda acontecem na própria diegese, no interior da trama, estruturando o próprio evento (pois elas operam no nível da sintaxe mesma das ações narrativas). Em função deste contraste entre as funções dessas seqüências, é necessário identificar melhor os problemas que marcam a passagem que se dá entre a organização interna das mesmas (sua “isotopia”, articulada em forma de “intriga”) e as apostas inferenciais que fixam um universo temático da história (o topic definido como segmento de “fábula”, que no caso da seqüência de Bond, é também o destino das ações). 

Precisamos examinar como esses parâmetros de coerentização interna da história se tornam componentes da própria seqüência textual, com relativa independência em relação aos processos de cogitação sobre o topic. Melhor dizendo, precisamos entender o que ocorre quando a estruturação textual da seqüência já confirma as apostas que poderíamos fazer sobre o conteúdo global da história: quando o texto se comporta do modo como previmos na leitura, a especificação do topic deixa de ser problema, nos exigindo imergir na estrutura textual proposta – alguns diriam que é neste ponto que entramos no regime de uma “experiência estética” da leitura. Para o fim presente, precisamos fazer a passagem das “istopias discursivas” para as “isotopias narrativas” – ou seja, do plano da estabilização da fábula para aquele da experiência da intriga

3. Como indício desse problema, deixamos no ar esse pequeno segmento de um episódio narrativo, o início de um conhecido exemplar do grande mestre do suspense no cinema narrativo clássico: com ele, pretendemos conferir uma sede observável do problema que o texto narrativo impõe aos processos ou percursos de leitura, quando o próprio nível textual da exposição trata de jogar com os sinais de sua coerência, mas ainda assim deixando certa vagueza no ar, funcionando para seus apreciadores como disjunções de probabilidade de seu próprio andamento encadeado, solidário e sucessivo.

No âmbito de certos gêneros narrativos (o suspense e o mistério são os casos mais salientes desse tipo de comportamento textual), este estado de hesitação hermenêutica conferida pelos sinais textuais – caracterizando as tensões que nos guiam, em nossos percursos de compreensão, na passagem da isotopia para o topic (portanto, dos níveis aparentes da sintaxe textual para os atos de interpretação) - pode se constituir como o motor mesmo das interações interpretativas, de tal maneira a conferir à organização isotópica das seqüências uma disponibilidade pemanente para as oscilações de nossa deliberação interpretativa – algo que envolve desde os desfechos de um episódio, o caráter real ou imaginado das situações narrativas (como no caso do clip de Bonnie Tyler) ou até mesmo a motivação dos agente. No caso do filme de Hitchcock, a ênfase do suspense, ao menos no que respeita a introdução dos perspnagens em Suspeita, situa-se nesse último aspecto de nossa possivel inquietude interpretativa: 

Alfred Hitchcock - Suspicion (1941) – seqüência inicial de Johnny e Lina

Na seqüência em que encontramos pela segunda vez, os personagens de Johnny (Cary Grant) e Lina (Joan Fontaine), de saída se explicita uma duplicidade desta interação, alternando-se entre duas ordens tópicas, a saber, a de uma iminente violência sexual ou a de uma abordagem amorosa mais “intensa”, por parte de Johnny: este aspecto é manifesto pela própria atmosfera da cena, agitada por um vento tempestuoso, assim como pelo comportamento do casal, em uma coreografia agônica - e acrescida de uma música de fundo que realça as indicações sobre a violência da situação. Na medida em que o enredo do episódio se desenvolve, a fala de Johnny confere o relevo que marcará todas as situações de sua interação com Lina (“o que você achava que estava tentando fazer, matá-la?” ou “estou começando a entender, você achou que eu ia beijá-la, não?”).  

Na continuação da cena, Johnny permanece jogando com a ambigüidade entre sedução e violência, mencionando seu interesse pelo estilo do penteado de Lina. Na medida em que avança o diálogo, se estabiliza este aspecto pelo qual as ações do casal serão narradas daí para frente, na modalidade especificamente isotópica de sua coerência semântica (nas regras próprias do suspense, urdida por uma permanente irresolubilidade): em todas elas, vai preponderar esta oscilação entre a atração que Johnny exerce patentemente sobre Lina, combinada com os temores desta sobre o perfil moral de seu objeto de desejo. 

4. De modo a fazer estas seqüências de Suspicion servirem ao propósito de clarificar o aspecto textualmente funcional da representação narrativa das ações, precisamos entender que, ainda que conduzida por aspectos de isotopia que condicionam o exercício das aventuras interpretativas do leitor, as seqüências de ação também se definem por aspectos ligados à representação dos segmentos da história, de uma maneira relativamente autônoma à fixação de seus níveis puramente temáticos (isto é, exclusivamente ligado ao plano da “fábula”). Em primeiro lugar, isto implicaria uma significação mais precisa da idéia de “ações”, no contexto da narratividade: o fato de que estas se apresentem como “representações” significa que é o aspecto propriamente “seqüencial” de apresentação que nos importa – e isto em dois sentidos prinicipais: 

  • primeiramente, a ação narrativa é exibida como uma sucessão de eventos, já que sua estrutura de manifestação salienta um vetor manifestamente linear de apresentação (implicando um certo sentido de “ordem temporal” e de “articulação sintática” da sucessão, que discutiremos num ponto mais avançado do curso); 
  • além do mais, esta disposição em seqüência configura-se num sentido propriamente “intrigado” dessa sucessão, aí incluídas sua digressão ou distração eventuais, a intensificação ou atenuação emocional dos eventos e indicação de desfechos da história, como um todo ou de suas partes). 

É a ordenação isotópica (semanticamente coerente) e seqüencial (temporalmente ordenada) das ações que caracteriza, a unidade minimamente significativa dos “episódios” que constituem o sistema textual da narrativa: razão pela qual a fixação de um topic pede que os episódios narrativos reflitam, ao menos parcialmente, essa estruturação coerente dos eventos.

“Podemos (...) identificar inicialmente elementos que são partes do processo da fábula, no sentido de que não constituem textos autônomos, porque não possuem a dimensão adequada, mas podem ser ‘destacados’ diretamente no eixo do processo. É o caso daqueles que, na linguagem comum, são chamados de episódios da narração e que (...) os formalistas chamavam de motivos. Alguns destes motivos são essenciais para o desenvolvimento da narração, são ligados a ela, como diziam os formalistas: não é possível conceber uma narrativa policial sem um assassinato e a descoberta de sua dinâmica; um romance de amor precisa de um enamoramento; um de aventura, de uma partida para um território desconhecido.” (VOLLI, 2007: 110).

Nas teorias da narrariva, este aspecto da apresentação seqüencial das ações se constitui sob a baliza de uma noção de coerência interna de seus segmentos que identifica nos episódios da história a unidade minimamente significativa de sua estrutura: este aspecto nuclear da “estrutura episódica” permitiu às várias tradições teóricas da narratividade explorar o sentido em que a isotopia narrativa se manifesta no quadro das “sucessões de ações” e no modo como estas se definem a partir do caráter fortemente funcional de sua significação. Nas aventuras de James Bond, esses episódios se constituem como lutas, perseguições e similares; em Suspicion, ele gravita em torno do enlace romântico de Lina e Johnny. 

Pensada no aspecto de condutora ou indicadora dos processos ativos da interpretação e das apostas hiptotéticas sobre o universo tópico da história (ou da destinação final de seus acontecimentos na sucessão), tal estrutura episódica é definida por Umberto Eco, em termos de um conjunto mínimo de aspectos: tais atributos relacionam o universo das ações e dos agentes na sua relação com a atividade da leitura e da interpretação; aqui já se insinua a idéia de uma estrutura narrativa definida no âmbito da seqüência de acontecimentos, atualizada por uma ordem discursiva pautada pela sucessividade textual. 

“...uma narração é uma descrição de ações que requer para cada ação descrita um agente, uma intenção do agente, um estado do mundo possível, uma mudança com sua causa e o propósito que a determina; a isto poderíamos acrescentar estados mentaisemoçõescircunstancias; mas a descrição é relevante (diríamos: conversacionalmente admissível), se as ações descritas são difíceis e somente se o agente tem uma escolha óbvia sobre o curso de ações a empreender a fim de mudar o estado que não corresponde aos próprios desejos; e os eventos que se seguem a esta decisão devem ser inesperados e alguns deles devem parecer inusuais ou estranhos.” (ECO, 1986: 90).

5. Por outro lado, em toda a parte de seu texto sobre histórias, no qual se dedica ao nível das ações, Volli nos recorda como a questão da ordenação seqüencial dos eventos narrados constitui a baliza fundamental da organização isotópica dos elementos narrativos. Consideremos três casos desta concepção da discursividade seqüencial nas diferentes tradições das teorias da narrativa: 

  • seja na perspectiva originária do formalismo de Vladmir Propp (em que a tessitura das ações e de sua sucessão se define pelos aspectos “funcionais” que elas preenchem, para preparar, iniciar, problematizar, desafiar ou concluir os acontecimentos da história);

Essquema das finções narrativas, em Vladmir Propp (in Volli, p. 112)

  • ou nas formulações mais sistemáticas do estruturalismo narratológico, em Claude Bremond (em que as seqüências funcionalizam a unidade que a narração institui para as ações, de modo a apresentá-las em seu estado virtual, de realização e de conclusão);

A sequência narrativa elementar, em Claude Bremond (in Volli, p. 114)

  • ou finalmente na perspectiva semiótica de A.J. Greimas (que identifica nela a estrutura de ações que são marcadas pelo aspecto do “contrato” - de uma competência adquirida, de sua realização performada e da sanção/prêmio que confirma sua realização).

Estrutura sintagmática da narrativa, em A.J. Greimas (in Volli, p. 117)

Em todos estes casos, a correlação entre uma estrutura propriamente sintagmática do texto narrativo e a ordem seqüencial da atualização narrativa das ações não se define pelos critérios de uma pura correspondência mimética entre o texto e os acontecimentos representados, mas pelo nível em que tais elementos da seqüência textual (os diferentes momentos da ação narrativa) solidarizam-se internamente, de modo a apresentar os acontecimentos com um certo nível de coerência interna, possibilitando os espaços lógicos que favoreçam apostas inferenciais por parte da leitura.

Toda esta ordem de questões certamente coincide com a perspectiva teórica consolidada por abordagens formalistas e estruturalistas dos estudos narratológicos – na compreensão de que as ações representadas narrativamente se constituem “funções”, ou seja: aquilo que, na análise do conto maravilhoso de Propp, manifesta uma espécie de nível “sintático” (estruturalmente solidário) das relações entre personagens e suas ações no tempo. Tais são aspectos constitutivos da arte do discurso narrativo que se revelam como parte de uma economia cognitiva das ações que é mais profunda e determinante, fundamentada na narrativa por um aspecto mais “antropológico” de sua manifestação - já que é relativa a uma dimensão humanamente significativa da representação das ações. Na sua “introdução à análise estrutural da narrativa”, Barthes reforça esse aspecto da forte funcionalidade que atravessa o tecido textual das histórias:

“Tudo numa narrativa é funcional? Tudo, até o menor detalhe, tem significação? A narrativa pode ser integralmente cortada em unidades funcionais? Será visto daqui a pouco que existem sem dúvida muitos tipos de funções, pois há muitos tipos de correlações. Disto resulta que a narrativa só se compõe de funções: tudo, em graus diversos, significa aí. Isto não é uma questão de arte (...), é uma questão de estrutura: na ordem do discurso, o que se nota é, por definição, notável: mesmo quando um detalhe parece irredutivelmente insignificante, rebelde a qualquer função, ele tem pelo menos a significação do absurdo ou de inútil: ou tudo significa ou nada.” (BARTHES, 2009 :29)

Ainda que o narrar esteja conectado a um certo conjunto de habilidades próprias à produção discursiva, o que certos textos aportam para a compreensão destas competências se localiza numa “estrutura lógica” das ações que pode ser depreendida até mesmo da conduta ordinária de qualquer um de nós – em nossas rotinas cotidianas, por exemplo (por exemplo, aquelas que a vida de Harold Crick na primeira sequência de Stranger Than Fiction ilustraria à perfeição). Especialmente na definição da “seqüência narrativa elementar” em Bremond, este horizonte antropológico da unidade sintagmática se explicita como tarefa de uma teoria da narrativa:

“Antes de tudo, é preciso definir o que é uma narrativa: para Bremond, ‘toda narrativa consiste em um discurso que integra uma sucessão de eventos de interesse humano na unidade de uma mesma ação’ (...). Se não há sucessão, também não há narrativa, mas somente descrição, dedução ou efusão lírica. Se não existe integração na unidade de uma ação, não há narrativa, mas apenas pura cronologia, ou enunciação de fatos não-coordenados; finalmente, se não existe interesse humano (ou se os eventos citados não são produzidos por sujeitos humanos ou antropomórficos), não há narrativa, ‘visto que somente em relação a um plano humano é que os eventos tomam sentido e se organizam em uma série temporal estruturada.’” (VOLLI, 2007; 113).

A seguir, nas próximas sessões do curso, exploraremos os aspectos das dinâmicas internas dessa estrutura episódica das formas narrativas, a partir de seus aspectos funcionais e disjuntivos de organização discursiva de histórias: trataremos da estruturação “lógica” e “proairética” das ações e seqüências narrativas, no modo como a pensa Roland Barthes - e de como sua configuração, a partir de continuadas disjunções que abrem constantes horizontes de probabilidade e de escolha de caminhos para evolução do enredo, institui os “níveis actanciais” da compreensão da história (aqueles que se ligam aos perfis psicológico, causal, moral e motivacional do comportamento dos agentes), no modo como as elabora Umberto Eco.  

Referências Bibliográficas:
ECO, Umberto. “Estruturas narrativas”. In: Lector in Fabula: pp. 85,92;
VOLLI, Ugo. “Histórias”. In: Manual de Semiótica: pp. 91,132.
 
Leitura Adicional:
BARTHES, Roland. “Introdução à análise estrutural da narrativa”. In: Análise Estrutural da Narrativa: pp. 19,62
TOMACHEVSKI, Boris. “Tema”. In: Teorias da Literatura: formalistas russos: pp. 168, 204.
 
Próximas Leituras:
BARTHES, Roland. “Sucessões de ações”. In: A Aventura Semiológica: pp. 152,163;
ECO, Umberto. “Estruturas actanciais e ideológicas”. In : Lector in Fabula: pp. 151,162.

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