Notas da 9a sessão do curso (18/06/2025): discordâncias na "ordem" temporal do discurso narrativo (Ricoeur e Genette)
Introdução às Teorias da Narrativa (GEC 114)
Aula no 8 (18/06/2025)
Aula no 8 (18/06/2025)
Os jogos com o tempo: a ordem temporal do discurso e da história nas teorias da narrativa (G.Genette e P.Ricoeur)
1. No momento em que iniciamos esta última etapa do percurso sobre as teorias da narrativa, na última unidade desse curso, estabeleceremos as relações nas quais o exame das estruturas textuais que constituem um universo narrativo entram em relação com aquilo que caracteriza sua dimensão mais “pragmática” de manifestação, isto é: precisamos avaliar como é que todos estes aspectos que definem a arte de contar historias (como representação das ações, ordenação seqüencial de seus elementos, ativação de estruturas tópicas e actanciais de seu discurso) encontra-se finalmente com a instância na qual uma historia é finalmente e efetivada por seu leitor ou espectador, passando a constituir o objeto de uma experiência propriamente dita (do ponto de vista de sua compreensão, mas incluindo aí os aspectos sensíveis e emocionais que a compõem), através dos modos como nos ligamos cognitiva e afetivamente a estes acontecimentos – sejam estes dados como elementos de uma construção imaginária de ficção ou como ordenação factual, própria ao regime histórico do narrar. Assim formula esse ponto Gérard Genette, em seu Discurso da Narrativa:
"A narrativa literária escrita tem, quanto a este ponto, um estatuto ainda mais difícil de precisar. Como a narrativa oral ou fílmica não pode ser 'consumida', logo atualizada, senão num tempo que evidentemente é o da leitura, e ainda que a sucessividade dos elementos possa ser contradita por uma leitura caprichosa, repetitiva ou seletiva, não se pode sequer chegar a uma analexia perfeita: pode-se passar um filme ao contrário, imagem a imagem; não se pode, sem que deixe de ser um texto, ler um texto ao contrário, letra por letra, nem mesmo palavra por palavra; nem sempre até, frase por frase (...). Contudo, não se põe a questão de identificar o estatuto da narrativa escrita (literária ou não) ao da narrativa oral: produzida, como todas as coisas, no tempo, [ela] existe no espaço e como espaço, e o tempo necessário para a 'consumir' é aquele que é preciso para percorrer ou atravessar, como uma estrada ou um campo. O texto narrativo, como qualuqer outro texto, não tem outra temporalidade senão aquela que toma metonimicamente de empréstimo à sua própria leitura." (GENETTE, 1995: 32,33)
Na unidade anterior do curso, já vimos como um dos aspectos da manifestação de um registro discursivo no tecido narrativo coincidia com o emprego dos diversos tempos verbais, implicando uma maior ou menor proximidade com o universo das ações e situações apresentadas na história - resultando numa maior ou menor sinalização destes efeitos da enunciação do narrador ou dos agentes inscritos à história sobre os fatos narrados. Até aqui, contudo, vislumbramos estas questões como problemas mais atinentes ao registro ora mais “objetivo”, ora mais “subjetivo” do universo da história narrada. Estas questões afetavam, portanto, as diferentes distâncias concebíveis entre a superfície do texto narrativo e os universos da fábula, como instâncias ou mundos de referência da história.
Nestes termos, é sintomático que o registro em que predomina a transparência das marcas da enunciação - conferindo plena transitividade ou transparência aos modos de apresentação da história - seja aquele dos diferentes modos associados ao pretérito, sobretudo o perfeito: é nestes tempos verbais que se caracteriza, para os fins de nossa análise, aquela modalidade da enunciação que está mais próxima ao registro da história ou então de uma narratividade mais “pura”, aquela em que as ações se manifestam como se nada ou ninguém as conduzisse, a não ser estes aspectos puramente funcionais da conexão entre seus segmentos - como partes de uma pura causalidade do seguir-se próprio às coisas e suas relações. Ora, este é também o tempo mais próprio dos momentos em que discursos como o dos acontecimentos jornalísticos procuram identificar a ordem dos eventos de todo dia, em seu aspecto de auto-determinação, sem que se possa escavar em seu trabalho de exposição as marcas de uma condução subjetiva de seu modo de ser contada.
"O tempo narrativo, em particular, é afetado pelo modo como a narração se estende em cenas em forma de quadros, ou se precipita de tempo forte em tempo forte (...). A distinção entre 'cenas' e 'transições' ou 'episódios intermediários' também não é estrittamente quantitativa. Os efeitos de lentidão ou velocidade, brevidade ou espa;hamento estão no limite entre o quantitativo e o qualitativo. Cenas longamente narradas e separadas por transiçõees breves ou por resumos iterativos (...) podem ser os pilares do processo narrativo, ao contrário das narrativas, em que são os acontecimentos extraordinários que formam a ossatura (...). A disposição das cenas, dos episódios intermediários, dos acontecimentos marcantes, das transições, não para de modulas as qualidades e as extensões. A esses aspectos, somam-se as antecipações e os retrospectos, as inserções que permitem incluiur várias extensões temporais rememoradas em sequências narrativas breves, criar um efeito de profundidade em perspectiva ao mesmo tempo em que se rompe com a cronologia." (RICOEUR, 2020: 135)
Portanto, no caso do uso dos verbos no presente do indicativo, há uma significação que traz com ele a idéia de que a instância discursiva vem finalmente ao primeiro plano em relação à transparência narrativa. Mas há um aspecto desta significação dos tempos verbais que parece escapar ao tratamento da enunciação narrativa que é definido originariamente por uma linguística do discurso – seja qual for a matriz teórica de sua orientação: trata-se da idéia de que esta ordenação dos eventos no presente ou no passado – e, mais ainda, a exposição das ações em uma estrutura combinada dos tempos de sua ocorrência, no contexto da história – são instâncias que moldam uma certa compreensão do tempo atualizado pela narrativa, envolvendo a atribuição de uma significação especial dessa compreensão - um tipo de sentido temporal que não se encontraria originariamente na ordem exclusiva da experiência cotidiana do tempo, e que implica os modelos “poéticos” ou “configurativos” da sucessão narrativa enquanto instâncias genuinamente determinantes de um sentido temporal desta experiência. A relação entre formas narrativas e a particular significação de sua configuração temporal é o tema que nos interessa, a partir deste momento.
2. Ao comentar a questão da divisão dos tempos verbais em sua relação puramente gramatical com a explicitação ou não das instâncias do discurso narrativo (aspecto este que já examinamos anteriormente, através de Genette e Benveniste), o texto de Paul Ricoeur que serve de base a esta exposição destaca, entretanto, que os dois sistemas do trabalho da enunciação narrativa (o dos tempos verbais no pretérito e o do presente) têm uma relação com um aspecto gramaticalmente limitado da manifestação da temporalidade narrativa – especialmente quando consideramos suas implicações dificilmente traduzíveis em termos lexicais com respeito a uma experiência do tempo cotidiano e do tempo histórico, em diversos de seus aspectos.
O que se perde de vista, na perspectiva em que as teorias do discurso trabalharam o problema dos tempos verbais, é que há uma significação especial a ser atribuída ao fato de que os tais modalidades se empregam em relação a uma “narrativa de acontecimentos”, isto é, em relação a uma ordem das ações cuja estrutura envolva a caracterização de uma dimensão propriamente “histórica” de sua manifestação – portanto, não apenas situada no passado ou no presente da relação entre aquilo de que se fala e o próprio ato discursivo, mas também marcada por um sentido de configuração temporal que é não apenas “fixo” em sua dimensão semântica (os conceitos de “passado”, “presente” e “futuro”, sejam eles da ordem da atualidade ou da condicionalidade), mas precisamente “dinâmicos” em sua modulação narrativa (já que são acontecimentos que se dão, por assim dizer, en route, em percurso).
Nestes termos, o que falta às teorias do discurso narrativo é uma maior elaboração sobre aquilo que se compreende do passado de uma ação representada narrativamente, na sua relação com o sentido existencialmente apreendido de um acontecimento: em suma, de que modo o emprego dos verbos no passado em uma narrativa pode ser compreendido como relativo a algum aspecto desse pretérito, enquanto sendo da ordem do “real” (seja no cotidiano, seja em sua significação histórica, e ainda mesmo em sua dimensão mais radicalmente ficcional). Nesses termos, o que se busca com tal compreensão da “configuração” poética do tempo narrativo é o fato de que os discursos sobre acontecimentos (factuais ou ficcionais) fazem apelo a um sedimento de experiência do tempo, que encontra-se instalado na estruturação que fazemos dele em nossa vida cotidiana, por exemplo.
A maior explicitação da instância do discurso pela adoção dos modos do presente (indicativo e contínuo) parece manifestar esta conexão entre temporalidades narrativas e existenciais, mas, ainda assim, a linguística do discurso parece por demais ancorada em um sentido puramente “gramatical” de sua manifestação, como se esta forma semântica dos tempos verbais não implicasse algum tipo de correlação entre o que o texto narrativo exprime como conceituação do tempo e o nível propriamente experiencial ou existencial em que o presente é assumido como parte de uma significação que se atribui através de uma inscrição das coisas ao tempo em que elas nos ocorrem. Ao estarmos diante de um acontecimento que se desenrola na continuidade de seu presente, o sentido do testemunho que reclama a instância da enunciação explicita também uma certa relação entre o sentido temporal do narrar e o do viver o tempo, aspecto este que as teorias do discurso pareceram ignorar, de acordo com Ricoeur.
“Essa relação mimética entre tempo do verbo e tempo vivido não pode ser confinada ao discurso se, com os sucessores de Benveniste, interessamo-nos mais pelo papel do discurso na própria narrativa que na oposição entre discurso e narrativa. Acaso poderiam fatos passados, reais ou imaginários, ser apresentados sem intervenção de nenhum tipo de locutor da narrativa ? Os acontecimentos podem simplesmente aparecer no horizonte da história sem que ninguém fale de modo algum ? (…). Se for preciso discernir, na própria narrativa, entre a enunciação (o discurso, no sentido de Benveniste) e o enunciado (a narrativa, em Benveniste), o problema torna-se então duplo: de um lado, o problema das relações entre o tempo da enunciação e o tempo do enunciado; de outro, o problema da relação entre esses dois tempos e o tempo da vida ou da ação.” (RICOEUR, 2010: 109)
Se as teorias do discurso trabalharam com força a idéia de que os tempos verbais se prestam a elidir ou explicitar as instâncias enunciativas que conduzem uma história (aspecto este que manifesta o discurso narrativo como certamente fundado nas noções de uma “focalização” enunciativa, definido pelo trabalho da elocução da história), isto pode ter resultado na perda de foco sobre um dos aspectos mais importantes da manifestação desta “voz” das histórias, isto é, o fato de que os tempos verbais em que elas se exprimem acusam uma posição do discurso numa temporalidade histórica que pode transcender o próprio exercício do discurso – isto é, o fato de que o tempo da enunciação está localizado numa estrutura da ordenação temporal que constitui-se como condição de possibilidade da própria narração.
Assim sendo, “passado” e “presente” são aqui perspectivas temporais, pelas quais se exprime o modo específico de um discurso narrativo se localizar, em face da tarefa de instaurar ou “presentificar” as ações que aparecerão para um leitor ou um espectador: sem o preenchimento destas condições – sendo a dimensão temporal a mais importante delas – o sentido compreensível da história nos escapará, pois ele não se encontra fundamentalmente nos sujeitos que se actorializam na historia (seja como actantes ou como narradores), mas no fato de que estes se inscrevem no tecido textual a partir dos modos nos quais esta presentificação é significada temporalmente – na correlação com o aspecto existencialmente internalizado da significação do tempo em nossa vida ordinária.
Por exemplo, a maior explicitude ou pessoalidade de uma voz narrativa é o momento mais evidente dessa diferença (ou “discordância”) entre tais perspectivas temporais (a do “presente” do narrador e a do “passado” do eventos). Nestes termos, a distinção entre “narrativa” e “discurso” se manifesta aqui num contexto em que se distingue fundamentalmente a “coisa” narrada (nos regimes próprios à transitividade da narrativa) e o “ato” de narrar (quando a voz enunciativa se torna mais explicitada): o recurso aos tempos verbais manifesta esta distinção como uma separação entre o “tempo narrado” (Erzhälte Zeit) e o “tempo do narrar” (Erzhälzeit) - noções que Genette trabalha em seu texto, e que Ricoeur endereça à fonte de uma “poética morfológica”, na obra do teórico da literatura alemão Günther Müller.
3. Nos restituímos, desse modo, a alguns aspectos da enunciação da notícia do atentado contra o presidente John F. Kennedy, na voz do locutor do boletim da CBS News, Walter Cronkite, no momento mesmo em que as primeiras informações começavam a chegar às redações do mundo inteiro: na organização do relato jornalístico desta história (considerada na sua posição discursiva específica, própria do registro testemunhal que se instala numa perspectiva do presente da evolução dos eventos, portanto característica de uma mediação em primeira pessoa), vemos atribuir-se primeiramente uma “ordem” da sucessão acontecimental que não coincide necessariamente com aquela supostamente própria aos eventos – portanto, no tocante à ordem causal mesma da sucessão temporal que os constituem.
CBS Live Bulletin, 22/11/1963 – a partir de 17:55 até 30:21
Nesse intervalo da seqüência em que a voz do âncora comanda as ações de um acontecimento que se desenrola ativamente, para além da presunção de um controle que a narração possa exercer sobre seu destino (pois até aqui, o que temos é ainda apenas um “atentado” e não um “assassinato”), a configuração narrativa do evento investe sobretudo nas perspectivas temporais que esta voz instaura (ou produz): a certa altura da evolução da narração (a partir de 18:12), quando o locutor diz "Esse foi o incidente": deste ponto em diante, o emprego dotempo presente dos verbos da ação cede espaço à evolução dos eventos, localizada no passado imediato de seu locutor - quando recobra-se a ordem na qual o atentado desponta como o acontecimento em questão (quando o locutor diz que “o presidente Kennedy, a primeira dama e o governador Connelly iam em comitiva, na direção do centro de Dallas…” ), já instaurando uma primeira prolepse (“…onde o presidente era aguardado para uma conferência…”), e recobrando o evento dos disparos contra o presidente, no meio do caminho (“…quando três tiros foram ouvidos”).
Uma vez, portanto, que os eventos se configuram nessa ordem de uma oscilação entre as diferentes momentos de sua evolução (uma vez dada a perspectiva temporal do ato de narrar), emerge um novo fenômeno – próprio das formas narrativas – que não pode ser explicado exclusivamente pelo recurso a uma ordem “anacrônica” da sintaxe narrativa, nesse sentido em que a compreendemos como cobrindo a extensão temporal integral que a narração pretende obter. No caso do boletim da CBS News, isso se manifesta por uma espécie de retardamento ou pausa que a narração exerce sobre a representação da evolução de determinados segmentos da ação, pela qual certos detalhes do acontecimento podem ser narrados, como numa espécie de parêntese que se impõe à temporalidade puramente sucessória das ações (18:24 a 18:40, “três tiros foram ouvidos, “…o presidente caiu no colo da primeira dama, com ferimentos na cabeça, testemunhas viram sangue saindo de sua cabeça, enquanto o governador caiu no chão do carro, com ferimentos no peito.”).
O aspecto metafórico do “jogo” que caracteriza estas relações entre temporalidades do narrar e do histórico revela um aspecto mais radical do modo como se implicam as narrativas e a vida comum ou a atualidade histórica: é neste aspecto que Ricoeur identifica a dimensão radicalmente “poética” deste aspecto da compreensão do tempo instaurado pela narrativa – é o fato de que a tarefa da narração e da história que ela constitui (pautada por todos estes aspectos da escolha pelos regimes de freqüência e de duração que a poiésis narrativa faz sobre os elementos da evolução temporal da história) é a de instaurar esta temporalidade dramática como “sentido” daquilo que - na sua origem vivida – é, essencialmente falando, insignificante.
Em suma, apenas nos restituímos a um tempo da vida que se historiciza porque mediamos as longas sucessões de ocorrências anódinas de nosso viver pelos recursos da compressão e da dilatacão que caracterizam a poética do narrar: em suma, o tempo histórico que experimentamos como “natural” é, em verdade, constituído por atos de criação que se definem pelas operações que fazemos sobre a temporalidade linear do dia-a-dia, seja no sentido de abreviá-la ou de distendê-la. Não apenas há descontinuidade entre o tempo narrado e o tempo do narrar, mas apenas o último deles é capaz de determinar o sentido com o qual passamos a atribuir a compreensibilidade do primeiro. É ao narrar que inscrevemos à temporalidade do histórico uma significação que lhe é apropriada, isto é, humanamente compreensível.
“Se podemos chamar, como Genette, ‘jogo com o tempo’ a relação entre o tempo do narrar e o tempo narrado na própria narrativa, esse jogo tem algo que está em jogo que é a vivência temporal (Zeiterlebnis) visada pela narrativa. A tarefa da morfologia poética é mostrar a conformidade entre as relações quantitativas de tempo e as qualidades de tempo que se ligam à vida. Inversamente, essas qualidades temporais só são exibidas através de um jogo de derivações e das inserções, sem que se inclua uma meditacão temática sobre o tempo, como em Laurence Sterne, Joseph Conrad, Thomas Mann ou Marcel Proust. O tempo fundamental continua implicado, sem tornar-se temático. Contudo, é precisamente o tempo da vida que é ‘co-determinado’ pela relação e pela tensão entre os dois tempos da narrativa e pelas ‘leis da forma’ que delas resultam.” (RICOEUR, 2010 : 136,137).
4. Esta idéia de um descompasso essencial entre a ordem da narrativa e a dos eventos contados também se constitui na base do pensmento de Gérard Genette sobre a ordem temporal constitutiva de uma história narrada: em seu Discurso da Narrativa, este aspecto de uma heterogeneidade do tempo da história e do tempo da narrativa (à qual ele designa sob o termo geral de uma “anacronia” entre as duas instâncias) aparece em vários momentos de sua argumentacão, desde o início do livro, quando discute precisamente a “ordem” temporal do discurso narrativo.
É nestes termos que Genette define, de saída, a convivência – no interior mesmo do corpo narrativo – de duas temporalidades distintas, aquela que é originariamente manifesta das histórias contadas (ficcionais ou factuais) e aquela que é instituída pelo trabalho do discurso da narração: mais do que isto, o tempo que encontramos manifesto numa narrativa é o esforço por assimilar na ordem que lhe é própria, o tempo da história; ora, este é tanto o aspecto que confere ao narrar sua propriedade e sua força respectivas, mas também o sinal daquilo que nele define seu fracasso exemplar (a saber, o fato de que a história somente se manifesta na temporalidade própria da narração).
Do mesmo modo que com Ricoeur, somos aqui restituídos à dualidade entre um “tempo da história” e um “tempo da narrativa”: apenas na leitura podemos ter a impressão de uma unidade entre as temporalidades da história e do narrar, sendo que o texto narrativo, enquanto tal, se constitui fundamentalmente numa ordem temporal absolutamente própria; nestas condições, o sentido mesmo de “ordem” – explorado por Genette como um primeiro aspecto do discurso narrativo – não pode ser pensado senão na perpspectiva desta fundamental heterogeneidade de sua relação com respeito aos acontecimentos tomados em questão pelo narrar.
Se confrontarmos a ordem dos acontecimentos da história com aquela que caracteriza sua organização no corpo narrativo, não constataremos uma absoluta transparência da passagem da história para o discurso, muito pelo contrário: ainda assim, é possível restituirmos a dimensão histórica de uma ordem discursiva, já que é próprio da narrativa se constituir na relação com um universo das ações minimamente compreensível e não aboslutamente arbitrário ou convencional.
“A localização e a medida dessas anacronias narrativas (como chamarei aqui às diferentes formas de discordância entre a ordem da história e a da narrativa) postulam implicitamente a existência de um grau zero, que seria um estado de perfeita coincidência temporal entre narrativa e história. Tal estado de referencia é mais hipotético que real. Parece que a narrativa folclórica terá por hábito conformar-se, pelo menos nas suas grandes articulações, com a ordem cronológica, mas a nossa tradição literária (ocidental), pelo contrario, é inaugurada com um efeito de anacronia, caracterizado, pois desde o oitavo verso da Ilíada o narrador, depois de ter evocado a querela entre Aquiles e Agamêmnon, ponto de partida da sua narrativa (ex hou de ta prôta), regressa uma dezena de dias atrás, para expor a sua causa em cerca de cento e quarenta versos retrospectivos (afronta a Crises – cólera de Apolo – peste).” (GENETTE, 1995: 34).
Este aspecto da presença de uma ordem temporal histórica no corpo narrativo é destacada por Genette não apenas como um elemento da narrativa clássica, mas de todo discurso que pretenda não deixar no vácuo a relação entre os eventos narrados e sua posição relativa no tempo da história, mesmo quando a ordem de sua apresentação não corresponda à estrita linearidade da sucessão dos eventos: nos casos em que esta ordem é invertida, por exemplo, o texto não se exime de fornecer – quando é o caso – indicadores desta inversão ou da antecipação do futuro.
“Essa divergência entre a ordem da narração e a ordem dos fatos não se refere somente a romances de gênero, como os policiais, mas também a poemas épicos, como a Odisséia, grandes romances de arte, como Em Busca do Tempo Perdido, filmes que contêm flashbacks, obras teatrais que se ocupam com a reconstituição de eventos do passado, como Édipo, ou que, como o Rei Lear, desenvolvem ao mesmo tempo mais tramas. Em suma, a alteração da ‘ordem natural’ é uma prática muito difusa em um grande número de diferentes narrações.” (VOLLI, 2007: 100)
Como a absoluta coincidência da história e do discurso é apenas ideal (ao menos no que respeita a ordem temporal de sua manifestação), estes procedimentos ilustram o ponto genettiano, pelo qual a “anacronia” não se constitui como desvio ou distorção de uma desejada concordância entre temporalidades, mas o aspecto essencial através do qual a ordem temporal do narrar se coloca em perspectiva para a atividade de sua atualização, através da leitura ou do acompanhamento sucessivo da história (seja em que modalidade mediática isso se configurar). O aspecto constitutivamente discordante das temporalidades do narrar e do histórico não podem ser eliminados, a não ser ao preço da morte mesma do texto enquanto veículo narrativo.
5. Como vimos em citação anterior do capítulo “Ordem”, Genette acompanha aqui a tradição de análise que localiza a matriz da imaginação narradora própria de nossa civilização como sendo aquela que se manifesta nas estratégias que Homero constrói para introduzir-nos ao universo poético de sua Ilíada – lançando-nos, de saída, num universo das ações em seu presente (o confronto de Aquiles e Agamenon) que transcorre como implicando uma coincidência entre discurso narrado e historia, para em seguida nos restituir a uma temporalidade anterior dos eventos, que nos seria auxiliar para a compreensão do contexto deste primeiro evento. É o que ocorre a partir do momento em que Agamenon e Aquiles discutem, em razão do primeiro haver sequestrado Briséas (escrava de Aquiles), em troca de Criseide, filha de Crises, que havia invocado a Apolo que o rei a devolvesse. Este é praticamente o início da Ilíada, em seus primeiros versos:
“Canta-me a Cólera – ó Deusa – funesta de Aquiles Pelida, causa que foi de os Aquivos sofrerem trabalhos sem conta e de baixarem para o Hades as almas de heróis numerosos e esclarecidos, ficando eles próprios aos cães atirados e como pasto de aves. Cumpriu-se de Deus o desígnio desde o princípio em que os dois, em discórdia, ficaram cindidos, o de Atreu filho, senhor de guerreiros, e Aquiles divino. Qual, dentre os deuses eternos, foi a causa de que eles brigassem?”
Curioso notar como, ao apresentar-se adaptada para o formato fílmico, há mais de uma década, esse episódio é curiosamente restituído a seu suposto lugar no tempo “histórico” de sua aparição, quando toda a trama que nos conduz ao encontro dos antagonistas em Tróia se apresentou a nossos olhos, em sua perfeita cronologia originária (portanto, mais próxima da isocronia dos eventos do décimo ano da guerra de Tróia).
Troy,Wolfgang Petersen (2004) – confronto de Aquiles e Agamenon
Ao retomarmos essa estrutura modelar do modo de apresentação temporal da narração, vemos introduzir-se, por seu intermédio, uma descontinuidade essencial entre o tempo dos eventos (sejam eles originados da atualidade histórica ou da imaginação fabuldaora) e aqueles que se manifestam através de uma atualização narrativa: a análise desta ordem temporal dos dois eixos do acontecimento (o da história e o de sua narração) nos fará enxergar que aquilo que a narrativa apresenta em primeiro lugar não é necessariamente o primeiro ponto dos fatos históricos; esta estrutura da anacronia fundamental das relações entre as cronologias da história e da narrativa se manifesta de formas muito variadas, seja através de retrospecções ou antecipações dos acontecimentos da fábula. E, finalmente, constitui-se como uma espécie de condição inevitável (diríamos até, transcendental) da organização narrativa, em sua relação com os modos de sua apreensão na leitura.
High Fidelity, Stephen Frears (2000) – início do filme
Ao designar estes procedimentos que fazem variar os níveis da ordem temporal da história (e que podem ter determinacões objetivas ou subjetivas), Genette os define como sendo da ordem das “prolepses” e das “analepses” (no linguajar mais contemporâneo, eles são assimilados àquilo que contemporaneamente se chama de “flash-forwards” e de “flash-backs”): no primeiro caso, trata-se de fazer o discurso narrativo antecipar momentos da história que, nesta ordem factual, encontram-se mais à frente do momento imediatamente anterior do presente da narração; as últimas, por seu turno (e que são mais freqüentes no tecido narrativo mais canônico), designam o procedimento inverso, ou seja, o de apresentar narrativamente acontecimentos que, na ordem da história, ocupavam uma posição anterior à deste segmento do discurso, no presente de sua enunciação.
Para além disso, a anacronia narrativa pode implicar dimensões de “alcance” e de “amplitude”: no caso da seqüência que acabamos de examinar em High Fidelity, seu “alcance” define-se pela distância temporal que demarca as posições relativas da narração e da história, podendo situar-se a um recuo de aproximadamente 20 anos entre o relato inicial de Rob Gordon, ao separar-se de sua esposa Laura, e as primeiras experiências amorosas, em sua pré-adolescência. Quanto a “amplitude”, ela é designada pela temporalidade específica dos eventos compreendidos em cada analepse, nesse caso, correspondendo aos poucos dias – na verdade, “quatro noites”, segundo o romance original de Nick Hornby, no qual se baseia o filme - passados entre o primeiro beijo de Rob e Alison, seguido do episódio do flagrante que o narrador faz de sua então namorada beijando Kevin Bannister.
Ao arrematarmos assim a questão da “ordem”, como aspecto das discordâncias que constituem a narrativa literária ou audiovisual, na sua dimensão “configuradora” dos tempos da história, indicamos não apenas o caráter “anacrônico” da distribuição sintagmática dos eventos, na cronologia de sua sucessão narrativa (como nos modos canônicos de dar início às histórias “no meio das coisas”, ao invés de respeitando a ordem temporal originária dos acontecimentos), mas também propomos um avanço da análise sobre as modulações temporais que acontecem em instâncias mais “internas” dos episódios narrativos- razão pela qual “analepses” e “prolepses” implicam igualmente a distância temporal definida por seus respectivos “alcances” e os aspectos durativos de sua evocação episódica, sob a forma de suas “amplitudes”.
Especialmente no caso da amplitude, pode-se dizer que este regime da narração instalado no presente instaura um efeito particular sobre a experiência que obtemos da história, uma vez mediada pelo discurso narrativo, num nível que afeta a relação do discurso com o presente das ações, não apenas como mera correspondência temporal, mas a partir de um certo efeito de sua modulação rítmica mais própria (que não se refere tanto a sua “ordem”, mas decerto a sua “duração”). Para nos darmos conta disso, basta que nos restituamos ao tempo originário do acontecimento do atentado, consideravelmente mais “breve” do que aquele que o discurso que o reorganiza em sua restituição ou mediação testemunhal, para avaliarmos esse outro aspecto da “discordância” entre história e discurso. Este será nosso próximo assunto.
Referências Bibliográficas :
GENETTE, Gérard. “Ordem”. In : Discurso da Narrativa ;
RICOEUR, Paul. “Os jogos com o tempo”. In : Tempo e Narrativa, Vol. 2.
Leituras Recomendadas:
VOLLI, Ugo. “Histórias”. In: Manual de Semiótica;
Próximas Leituras :
ECO, Umberto. “Divagando pelo bosque”. In: Seis Passeios pelos Bosques da Ficção;
GENETTE, Gérard. “Duração”. In: Discurso da Narrativa.
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