Notas da 10a sessão do curso (25/06/2025): anisocronia como figuração das discordâncias temporais na "duração" narrativa (U.Eco e P.Ricoeur)

Introdução às Teorias da Narrativa (GEC 114)
Aula no 9 (25/06/2025)

Da elipse à delectatio morosa: durações e ritmos da representação narrativa das ações (G.Genette, P. Ricoeur e U.Eco)

1. Ao fim da exposição anterior, arrematamos a questão da “ordem”, como aspecto das discordâncias que constituem a narrativa literária ou audiovisual enquanto dimensão “configuradora” dos tempos da história, indicando não apenas o caráter “anacrônico” da distribuição sintagmática dos eventos, na cronologia de sua sucessão (como nos modos de iniciar a história “no meio das coisas”, ao invés de respeitando a ordem temporal originária dos acontecimentos), mas também avançando para as modulações temporais que acontecem em instancias mais “internas” dos episódios narrativos.

Nos restituímos, desse modo, a alguns outros aspectos da enunciação da notícia do atentado contra o presidente Kennedy, na voz do locutor do boletim da CBS News, no momento mesmo em que as primeiras informações começavam a chegar às redações do mundo inteiro: na organização do relato jornalístico desta história (considerada na sua posição específica, própria do registro testemunhal que se instala numa perspectiva do presente da evolução dos eventos), vemos atribuir-se primeiramente uma “ordem” da sucessão acontecimental que não necessariamente coincide com aquela que é supostamente própria aos eventos – portanto, no tocante à causalidade mesma da sucessão temporal que os constitui.

Para além disto, contudo, vimos a configuração narrativa dessas ações investindo-se também para os pontos de vista que ela instaura (ou produz), como marcas de um outro tipo de experiência do tempo. Assim sendo, a certa altura da evolução da narração, a partir do momento em que o incidente do atentado começa a ser propriamente narrado (aspecto em que a explicitude do tempo presente dos verbos da ação cede espaço à evolução dos eventos, localizada no passado imediato de seu locutor), recobra-se a ordem na qual o atentado desponta como o acontecimento em questão (“o presidente Kennedy, a primeira dama e o governador Connelly iam em comitiva, na direção do centro de Dallas…” ), já instaurando uma primeira prolepse (“…onde o presidente era aguardado para uma conferência…”), e recobrando o evento dos disparos contra o presidente, no meio do caminho (“…quando três tiros foram ouvidos”).

Uma vez, portanto, que os eventos se configuram nesta ordem da oscilação entre as diferentes perspectivas temporais de sua evolução para o ato de narrar, emerge um novo fenômeno – próprio das formas narrativas – que não pode ser explicado exclusivamente pelo recurso a uma ordem “anacrônica” da sintaxe narrativa, nesse sentido em que a compreendemos como cobrindo a extensão temporal integral que a narração pretende obter. No caso do boletim da CBS News, isso se manifesta por uma espécie de retardamento ou "pausa" que a narração exerce sobre a representação da evolução de determinados segmentos da ação, pela qual certos detalhes do acontecimento podem ser narrados, como numa espécie de parêntese que se impõe à temporalidade puramente sucessória das ações (“…o presidente caiu no colo da primeira dama, com ferimentos na cabeça, enquanto o governador caiu no chão do carro, com ferimentos no peito.”).

2. Pode-se dizer que este regime da narração no presente, operando esta desaceleração sobre a velocidade da sucessão, avançando subseqüentemente sobre determinados detalhes da ação, instaura um efeito sobre a “amplitude” da anacronia com respeito a história (aquele plano da “discordância” narrativa em que se põe em jogo a extensão de um evento recordado, por exemplo), num nível que afeta a relação do discurso com o presente das ações, não apenas como mera correspondência temporal, mas a partir de um certo efeito de sua modulação rítmica mais própria (menos refere à sua “ordem”, mais ligado à sua “duração”). No que respeita o núcleo do acontecimento, reportado como sendo o atentado mesmo, registrado por um magnífico documento audiovisual do último século (o filme de Abraham Zapruder), podemos fazer uma idéia da duração originária do atentado – compreendendo não mais que 10 segundos, desde os primeiros tiros até a desaparição completa da limusine presidencial.

 Abraham Zapruder, “Zapruder Film” (1963)

Em contraste, apreciemos esta seqüência de JFK (filme de Oliver Stone), na qual a projeção desse documento é introduzida no contexto de uma narrativa que o promotor federal Jim Garrison constrói, para justificar suas teses acerca de um complô que haveria sido organizado para este assassinato: uma vez assimilado ao ato narrativo, observamos os modos como a fala do promotor decupa os diferentes momentos do acontecimento, detendo-se sobre seus detalhes (especialmente a partir do instante em que os eventos registrados no filme de Zapruder são tomados como referência dessa intriga). De imediato, o que se percebe é que o registro narrativo da seqüência forçosamente expande a duração original desse acontecimento, ao modo de uma “cena”: o interessante neste caso é notar como tal expansão feita sobre a duração do atentado registrado é um efeito não apenas das operações dramáticas da ficção, mas igualmente do discurso do promotor, no contexto da retórica da demonstração que adota para fazer do filme Zapruder um elemento da prova de sua tese sobre a conspiração contra o presidente.

 JFK, dir. Oliver Stone (1991)

Em cada um dos registros adotados para recompor o atentado contra Kennedy (no boletim ao vivo da CBS News, no relato do promotor sobre o filme Zapruder e na encenação de seu uso no filme de Oliver Stone), o desenvolvimento da história desse atentado - nos momentos que o constituem e no prosseguimento das ações, após o último tiro – implica a reprodução destas mesmas estruturas pela qual o presente do acontecimento é retomado por esforços parentéticos de uma constante desaceleração dos eventos - e pelos quais se pode narrar impressões e testemunhos importantes, especialmente quando está em jogo a possibilidade de determinar com alguma objetividade os aspectos da evolução ulterior dos acontecimentos.

A essa outra dimensão da discordância temporal entre narrativa e história, Genette identifica como sendo uma “anisocronia”, na medida em que ela afeta um aspecto dos “jogos com o tempo” que não implica apenas a cronologia evolutiva ou causal dos eventos (no modo próprio à “ordem”, e que delimita o modo configurado narrativamente das relações entre um “antes” e um “depois”), mas sobretudo os regimes em que cada episódio da história é apresentado, conforme a duração com a qual o narrar a institui na relação com um aspecto de seu tempo original – levando-se em conta, como veremos mais adiante, que o traço mais importante da validade ou eficácia de tais procedimentos se verifica na instancia da efetivação da narrativa, através de atos de leitura ou de apreciação.

No caso do atentado contra o presidente Kennedy, estes são os momentos em que a sucessão “real” dos eventos em questão é configurada no relato, de modo a conferir esta impressão de que os instantes mais intensos desse episódio (por exemplo, aqueles que se seguem imediatamente aos primeiros tiros ouvidos na Rua Elm, em Dallas) parecem se apresentar com uma espécie de “dilatação” de sua evolução temporal, como se acontecessem em câmera lenta – ou mesmo como se fossem súbita e momentaneamente interrompidos ou pausados. Aquilo que esses momentos do relato testemunhal ilustram é o problema das discordâncias temporais entre narrativa e história, pelo aspecto de sua “duração”, sendo esse nosso próximo centro de interesse, precisamente.

3. Na perspectiva em que Genette concebe o estatuto da “duração”, a discordância temporal a que ela corresponde manifesta-se em um aspecto, segundo ele, ainda mais “escabroso” das operações discursivas da representação das ações do que aquele que se dá pela discordância no plano da “ordem”: diferentemente desta última, é particularmente desafiante conceber - no âmbito da extensão temporal retida pela configuração narrativa - um “grau zero” dos estados de correspondência entre discurso e história, já que – diferentemente do problema da “ordem” – a noção de uma perfeita “isocronia” entre temporalidades do acontecimento e de sua narração é algo que não pode ser definido objetivamente, a não ser em hipótese experimental.

Se podemos esquematizar as cronologias da narrativa e dos acontecimentos, no plano de uma perfeita correspondência (e, assim sendo, estipular as espécies de anacronia, com respeito às posições respectivas de cada ponto da história retido pela narração), no caso da “duração”, esse estado de concordância é, por definição inalcançável em sua concretude – ainda que seja concebível, por proximidade, por exemplo, através da admissão dos regimes de “velocidade” da sucessão, conforme impliquem uma maior ou menos proximidade com a modulação temporal dos episódios.

“A narrativa isócrona, o nosso hipotético grau zero de referência, seria, pois, uma narrativa de velocidade igual, sem acelerações nem abrandamentos, em que a relação duração de história/extensão de narrativa permanecesse constante. É sem dúvida inútil precisar que tal narrativa não existe, e nem pode existir mais que a titulo de experiência de laboratório: seja ao nível da elaboração estética que for, imagina-se mal a existência de uma narrativa que não admita qualquer variação de velocidade, e esta observação banal já reveste alguma importância: uma narrativa pode passar sem anacronias, mas não pode proceder sem anisocronias, ou, se se preferir (como é provável), sem efeitos de ritmo.” (GENETTE, 1995: 87). 

Por seu turno, Umberto Eco elabora essa mesma questão dos procedimentos de modulação dos regimes da velocidade da sucessão narrativa, avaliando-os na relação com a mediação da atividade da leitura ou da apreciação (sendo este um tema que avaliaremos à parte, logo a seguir): assumindo que o texto narrativo é uma “máquina preguiçosa” (metáfora que ele já adotara em Lector in Fabula), já que oferece sinais apenas parciais ou incompletos dos eventos que traz à mostra para avaliação, a questão da duração relativa dos episódios em relação a sua suposta ou hipotética manifestação na história é menos pensada com respeito a esta relação mesma de correspondência (ao “grau zero” da isocronia, como a pensa Genette), mas precisamente nos efeitos que são próprios à eficácia com a qual essa discordância é trabalhada no plano da textualidade narrativa.

Assim sendo, se a narrativa factual que organiza os eventos do atentado de Kennedy nos oferece um exemplo de uma modalidade prolongada da velocidade dos acontecimentos, povoada por parênteses que fazem alongar-se em demasia uma ordem acontecimental que – por suposto - necessitaria ser efetuada através de uma maior colagem no andamento próprio desses acontecimentos dramáticos, Eco nos evoca uma espécie de “norma” de certos domínios da elaboração narrativa em que aquilo que é aceitável, em termos da configuração temporal da sucessão, na velocidade e duração que lhe são próprias, pede um estilo mais abreviado e elíptico da representação – que seja capaz de fazer abstração de detalhes e digressões que não nos permitem alcançar o desenlace dos episódios o mais diligentemente possível.

“Uma obra de ficção, poderíamos supor, descreve pessoas em ação, e o leitor quer saber como essas ações se desenvolvem. Disseram-me que, em Hollywood, quando um produtor está ouvindo a história ou o enredo de um filme proposto e acha que contem muito detalhe, ele grita: ‘Vamos ao que interessa!’. E isso significa: não percamos tempo, deixemos de lado as sutilezas psicológicas, vamos direto ao clímax, quando Indiana Jones é perseguido por uma multidão de inimigos ou quando John Wayne e seus companheiros estão prestes a ser derrotados por Jerônimo em Stagecoach.” (ECO, 1994: 55)

Esse jogo incessante entre a “brevidade” (que Genette identifica como própria da “elipse”) e a “interrupção” (que ele propõe como característica dos “pausa”) manifesta apenas dois pontos extremados do arco no qual o problema da impossibilidade da mais perfeita isocronia se coloca como condição mesma da estruturação narrativa do acontecimento (seja na ficção ou na narrativa factual): conforme a modalidade do efeito programado nas estruturas textuais de cada gênero discursivo, sua manifestação narrativa se dará pela opção de maior ou menor proximidade com cada um desses extremos – o que não significa, por seu turno, que não encontremos, com mais freqüência do que o que se pode supor, obras cujos segmentos efetuam diferentes regimes dessa duração anisocrônica.

De todo modo, a tradição do pensamento sobre as estratégias literárias da modulação temporal pareceram privilegiar (talvez até, valorativamente) aqueles gêneros que trabalham no sentido contrário da abreviação das velocidades, resultando em uma economia mais expressa das interações comunicativas entre texto e leitura.

“Em toda obra de ficção, o texto emite sinais de suspense, quase como se o discurso se tornasse mais lento ou até parasse, e como se o escritor estivesse sugerindo: ‘Agora tente você continuar...’. Quando falei em ‘passeios inferenciais’, quis dizer, nos termos de nossa metáfora silvestre, caminhadas imaginárias fora do bosque: a fim de prever o desenvolvimento de uma história, os leitores se voltam para sua própria experiência de vida ou seu conhecimento de outras histórias.” (ECO, 1994: 56).

4. Mas tal desaceleração dos eventos – até o grau de uma completa pausa - não pode ser identificada exclusivamente com os tipos de narrativa nas quais o desfecho da história necessita de um caráter mais “resolutivo” para as ações – como pareceria ser o caso da oposição entre gêneros mais marcados pela intensidade de certos episódios, por oposição àqueles casos literários em que os acontecimentos narrados são aqueles nos quais nada aparentemente acontece: pois mesmo em tipos de narrativa marcadas por uma certa tendência a abreviar determinadas situações (em função da necessidade de dar um caráter resolutivo ao destino dos acontecimentos), também encontraremos esses segmentos marcados por uma certa necessidade de distender ou pausar a duração dos eventos, para além daquela medida em que poderiam ser sentidas como parte de uma isocronia desejada entre o narrar e o acontecer.

 The Good, The Bad, and The Ugly, dir: Sergio Leone (1966)

Ao designar esse procedimento pelo nome de uma “delectatio morosa”, Eco identifica a importância atribuída a certos tipos de acontecimentos que, por várias razões a serem discriminadas, fazem com que a evolução da narrativa ceda mais tempo para seu desfecho, criando efeitos importantes do acompanhamento da história, em vários de seus aspectos: tomada de empréstimo de parte do universo da personagem Des Esseintes, do romance À Rebours (1884), do escritor francês Joris-Karl Huysmans, o termo caracteriza uma espécie de procrastinação prazerosa que podemos experimentar pela retenção temporal voluntária de certos tipos de atividade (e que é magistralmente exemplificada por manuais de casuística sexual, apreciados por aquele personagem ficcional), e que refletem o aspecto fortemente funcional e hedonístico da recusa em abreviar a intensidade de certas ações, por exemplo, mantendo-as indefinidamente no estágio das preliminares de sua consumação.

No correlato narrativo desse procedimento, esta procrastinação cumpre funções variadas, com respeito a uma evolução narrativa, no tocante à diligência de sua resolução ou apoteose: mais do que perder-se em sua própria duração (aquilo que parece caracterizar o prolongamento indefinido dos episódios, em estilos mais “modernos” da prosa literária), a delectatio morosa pode servir para prolongar a expectativa que experimentamos, com respeito à deliberação que a narração deve fazer sobre o destino dos episódios, uma vez que ponha em jogo aquele “código proiairético” mencionado por Roland Barthes, a respeito da sucessão das ações – aquele que orientará os desfechos como parte de um sistema de escolhas que o texto orienta sobre disjunções de probabilidade jogadas pela sucessão das ações na intriga.

Há assim uma relação entre o retardo da duração de certos eventos e o prolongamento do estado indeterminado de uma escolha pelo destino dos mesmos, de tal modo que sua manutenção na evolução da sintagmática narrativa é instrumental para os modos de nos colocarmos esteticamente, como leitores ou espectadores, em relação com sua potencial resolução (experimentamos um estado emocional determinado, em função mesmo de essa espera ser construída, como perfeitamente anisocrônica, no tocante a duração desse desfecho na história).

A propósito de uma seqüência de Casino Royale (primeiro romance com as aventuras do agente James Bond, publicado por Ian Fleming em 1953), Eco nos fala dessa relação entre os dois distintos regimes da duração (o abreviado e o moroso), precisamente na relação em que favorecem ou não certos “passeios inferenciais” que fazemos sobre a evolução dos acontecimentos – a maior brevidade ou retenção da velocidade da sucessão sinaliza para nós, de maneira dúplice, sobre a impossibilidade de uma perfeita isocronia entre narração e história (no aspecto de sua duração), mas também aponta para o fato de que tais procedimentos endereçam-se à instancia mediadora desses efeitos da obra, a saber, aquela do leitor ou do apreciador. Vejamos como são diferentes os modos nos quais esses eventos são tratados, na passagem do romance e na sua adaptação fílmica mais recente:

“Ouviu-se um nítido ‘fit’ agudo, um ruído da mesma intensidade de uma bolha de ar escapando de um tubo de pasta dentifrícia. Não se ouviu mais nenhum barulho, mas subitamente um terceiro olho aparecera em Le Chiffre, na mesma altura que os outros dois, exatamente no local em que o nariz grosso começava, abaixo da testa. Era um olho preto e pequeno, sem cílios nem sobrancelhas. Durante um segundo, os três olhos fixaram o outro lado da sala, depois o rosto pareceu escorregar. Os dois olhos laterais viraram para o teto. Então a cabeça caiu de lado, o ombro direito também caiu, e finalmente toda a parte superior do corpo balançou para o lado, sobre o braço da cadeira, como se Le Chiffre fosse vomitar. Mas ouviu-se apenas o barulho rápido de seus calcanhares no chão. E não se ouviu mais nada, nenhum outro movimento.” (FLEMING, 1965: 108,109)

 Casino Royale (2006), direção: Martin Campbell

No caso de sua encenação fílmica, poderíamos identificar esse regime mais “abreviado” da representação da duração nesse evento como repercutindo um aspecto mais “sensacional” de certos estilos narrativos - na medida de sua maior concentração sobre a intensidade das ações do que sobre a extensividade dos transcursos descritivos, líricos ou psicológicos: nesse sentido, a encenação desse episódio de Casino Royale repercutiria menos a estilização que Fleming pretende exercitar (possivelmente sem sucesso) de um estilo mais próprio à literatura de arte, aproximando-se mais ao traço da literatura popular de gêneros policias  “hard boiled”, e que o próprio Eco declina como contraponto dessa tendência à desaceleração das ações, própria à modernidade literária.

“A descrição ideal desse tipo de romance é a do massacre do dia de São Valentim: alguns segundos e todos os inimigos são liquidados. Mickey Spillane, que nesse sentido era o Al Capone da literatura, descreve no final de One Lonely Night uma cena que tinha que ocorrer em alguns instantes (...). Eu seria capaz de executar o massacre antes de terminar a leitura do texto, mas podemos nos dar por razoavelmente satisfeitos. Vinte e seis segundos de leitura para dez segundos de massacre é um bom tempo. No cinema, em geral, temos uma correspondência precisa entre o tempo do discurso e o tempo da história – um bom exemplo de cena.” (ECO, 1994: 61)

4. Muito embora boa parte dos procedimentos relativos ao retardamento das ações pareça mais associada - sobretudo nos exemplos advindos da prosa literária – aos excursos descritivos ou à efusão lírica ou psicológica que a narração produz, para nos auxiliar a reconhecer espaços ou lugares significativos da evolução da fábula, quanto movimentos interiores da consciência das personagens, é preciso destacar a função dessa delectatio morosa no interior da economia sucessiva das ações, pois ali ela é menos relativa à “descrição” do que à “narração” propriamente dita – para nos recordarmos de uma das “fronteiras” do narrativo, que já vimos consideradas por Genette. Uma vez tomada do ponto de vista da modulação temporal interna ao narrar, a importância dessa retenção temporal é mais notável quando ela é empregada no contexto da preparação de desfechos ou desenlaces dramaticamente importantes da história, como nesse clássico exemplo do cinema de gênero:

 Once Upon a Time in the West (1968), dir. Sergio Leone – créditos iniciais

O tempo da espera de um episódio, que é definido tematicamente por ser precisamente o de uma espera, não encontra correspondência estrita com a duração que lhe seria própria, na sua origem: mas a anisocronia que se instaura aqui é menos importante por esse efeito de “discordância” temporal (de todo modo, difícil de especificar objetivamente, como nos dizem Eco e Genette), mas sobretudo pelo modo como a seqüência nos impõe um ritmo de leitura adequado à experiência dessa procrastinação, em seu sentido preparatório ou preliminar; pois fora desse contexto, ela não poderia ser apreciada na qualidade da tensão que nela se acumula, pela série de sinais que exibe, na duração que é a sua mesma. Se pudéssemos tratá-la no plano de uma autonomia desse retardo em relação a seu súbito desfecho (quando o personagem de Charles Bronson emerge e executa os três capangas), quem sabe então seria possível – ou ao menos divertido - pensar nesse segmento como parte de um filme pornográfico (como na experiência que Eco nos sugere, ao avaliar situações narrativas de estrita isocronia em filmes desse gênero, como aquelas em que o sexo não está acontecendo).

“Ao tentar avaliar um filme que contém cenas de sexo explícito,verifiquem se quando uma personagem entra num elevador ou num carro o tempo do discurso coincide com o tempo da história (...). Num filme pornográfico, se alguém pega um carro para percorrer dez quarteirões, o carro vai percorrer esses dez quarteirões no tempo real. Se alguém abre uma geladeira e se serve de um refrigerante que vai tomar na poltrona depois de ligar a televisão, a ação demora exatamente o mesmo tempo que levaria se vocês estivessem fazendo a mesma coisa em suas casas.” (ECO, 1994: 67).

 Once Upon a Time in the West (1968), dir. Sergio Leone – primeira cena

Em suma, a anisocronia entre a narrativa e a história deve ser avaliada menos no que respeita a possibilidade de calculá-la objetivamente (já que isso constitui mais uma aposta interpretativa do que uma realidade empírica das estruturas textuais), do que no plano da particular funcionalidade que ela assume com respeito aos segmentos narrativos de uma obra (ou de suas partes constituintes, como seqüências e cenas): a razão disto é de que no processo ativo da leitura e da apreciação é que se determinam praticamente (ou psicologicamente) a mediação pela qual certos segmentos são apreendidos como mais “breves” ou “demorados”.

De maneira geral, estamos acostumados a identificar pela recepção de obras a delectatio morosa como estratégia textual associada à preparação daquilo que Eco designa como “tempo de trepidação” da narrativa, nos lembrando da lição aristotélica sobre a função das longas peripécias do herói, até o ponto de uma catástrofe ou vitória, resultando na “catarse” adequada (a descarga emocional proporcional à injúria sofrida) que experimentamos de um tal desenlace. A duração dessa preparação pode envolver uma longa ou breve duração, do ponto de vista da história (pode ser de anos a fio ou de minutos de ofensas, em uma mesa de bar), mas é necessário que sua preparação consuma aquele tempo necessário para instruir na leitura a sensação do desfecho brutal, imediato e intenso, como plenamente justificado pela duração empregada na apresentação dessas injúrias (se trata-se, nesse caso, de ofensas feitas a um herói, por exemplo). Tomamos aqui uma ilustração fílmica em tudo similar àquela mencionada pelo próprio Eco, em seu texto:

Mission Impossible 3 (2006), dir. J.J.Abrahams

5. Ao considerar teoricamente o arco que vai desde a maior velocidade possível imposta à duração narrativa (aquela conferida pela “elipse”) e a mais perfeita interrupção feita à sucessão dos eventos como duração contínua (caracterizada pela “pausa”), Genette tenta estabelecer algumas balizas para pensar o caráter mais sistemático da efetuação da anisocronia enquanto propriedade da configuração narrativa da “duração”: tomando como parâmetro o sistema musical de configuração dos andamentos, ele os designa como “movimentos”, tipificando-os através de quatro rubricas, duas das quais designam as extremidades da duração (“pausa” e “elipse”) e as outras duas significando os pontos intermediários entre a interrupção e a maior velocidade possível (“cena” e “sumário”).

Se considerarmos primeiramente os pontos medianos desse sistema, começando pelo “sumario”, seria difícil imaginá-lo como ocorrência constante no modo de configurar o andamento narrativo, a não ser como elemento auxiliar – tomado especialmente em conta nos segmentos de narrativas seriadas que necessitam, por razão de manter uma audiência flutuante conectada com os universos ficcionais em constante evolução, através de recursos verbais como “nos episódios anteriores”.

Em outros contextos mais “funcionais” de seu recurso na intriga, uma narrativa mais “sumária” pode emergir como parte daquilo que certos gêneros de focalização narrativa fazem aparecer no plano diegético – por exemplo, como elaboração da lembrança de uma personagem, que acaba por servir de recurso que orienta a leitura na recapitulação dos eventos anteriores da narrativa. Esta mesma função pode ser cumprida por diferentes maneiras de interromper a perfeita sucessão dos acontecimentos, introduzindo uma espécie de recapitulação resumida de eventos anteriores. Mas, em contextos como estes, em primeiro lugar, ela parece emergir como figura preparatória a – ou subsidiária da - função mais nitidamente acentuada e narrativamente constante da “elipse”.

“Se se visar mais precisamente a oposição entre cena e sumário, não se poderá, evidentemente, sustentar que esse gênero de textos ‘formam a imensa maioria da literatura mundial’, pela simples razão de que a própria brevidade do sumário lhe confere quase sempre uma inferioridade quantitativa evidente em relação aos capítulos descritivos e dramáticos, e, logo, que o sumário ocupa provavelmente, um lugar reduzido na soma do corpus narrativo, mesmo clássico. Em contrapartida, é evidente que o sumario foi, até ao fim do século XIX, a transição ordinária entre duas cenas, o ‘fundo’ sobre o qual elas se destacam, e, pois, o tecido conjuntivo por excelência da narrativa romanesca, cujo ritmo fundamental se define pela alternância entre o sumário e a cena.” (GENETTE, 1995: 96,97)  

Por contraste, no caso da “cena”, estamos na parte do arco mais próxima à figura de uma mais intensa procrastinação narrativa, que é própria à “pausa”: em algumas perspectivas teóricas da narrativa, este é o segmento dos andamentos em que a velocidade da sucessão encontra-se a mais próxima possível de uma isocronia com a história, sem realizá-la plenamente, já que seu valor nunca é completamente autônomo com respeito aos outros segmentos da ação, em suas modalidades próprias (e anisocrônicas) de duração. 

Em Genette, ela é ilustrada pelo “drama do deitar-se” de O Caminho de Swann, mencionado igualmente por Eco, em “Divagando pelo bosque”: mas em Proust, assinala igualmente Genette, há precisamente um processo de descolamento da cena, ao ponto de constituir-se ela inteira no tecido narrativo do projeto da Recherche. Nada de semelhante faz supor o mesmo, no tocante aos cânones da configuração rítmica do andamento, que demanda que a cena esteja em jogo permanente com as outras formas do durar narrativo.

De todo modo, cada uma dessas figuras (e aqui deixamos subentendidas as extremidades da “duração”, com a “pausa” e a “elipse”) apenas realiza seu potencial mediante uma atualização que jamais acontece exclusivamente no tecido textual das formas literárias ou audiovisuais: reconhecê-las no corpo narrativo da literatura e do cinema é apenas o efeito de superfície de uma atividade fundamental de leitura e apreciação que, em nenhuma hipótese, podem ser concebidas como sendo puramente passivas do texto ou de suas estruturas de sentido. 

As discordâncias que ocorrem na “ordem” e na “duração” da narrativa são aspectos que revelam o modo temporalmente intrigado, potencialmente indeterminado, lacunar ou “preguiçoso”, com o qual a narrativa constitui-se ou configura-se não para uma realidade puramente textual, mas sobretudo para um ato que supostamente é capaz de reconhecer essas estruturas, na medida do apelo que elas fazem a uma efetuação do texto, através da leitura e das competências aí implicadas – sendo que a estrutura dessa interação entre texto e leitor declina a dinâmica prazerosa de um jogo.

Referências Bibliográficas :
ECO, Umberto. “Divagando pelo bosque”. In: Seis Passeios pelos Bosques da Ficção;
GENETTE, Gérard. “Duração”. In: Discurso da Narrativa.

Leituras Recomendadas :
FLEMING, Ian. “Um rosto de pedra”. In:  Casino Royale.

Próximas Leituras :
ECO, Umberto. "Previsões e passeios inferenciais". In: Lector in Fabula;
ISER, Wolfgang. “O jogo do texto”. In: A Literatura e seu Leitor.
RICOEUR, Paul. “O mundo do texto e o mundo do leitor”. In : Tempo e Narrativa.

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