Notas da 8a sessão do curso (04/06/2025): o estatuto da narração, em R.Barthes, G.Genette, E, Benveniste

Introdução às Teorias da Narrativa (GEC 114)
Aula no 7 (04/06/2025)

Dos Agentes à Narração: das perspectivas “subjetivas” do discurso ao estatuto da condução narrativa no discurso factual e de ficção (Barthes/Genette/Benveniste) 

1. Entramos agora na última etapa de nosso percurso sobre os elementos da narrativa, para explorarmos então a questão do estatuto do “discurso”, em um sentido diferente daquele pelo qual examinamos as estruturas discursivas do topic e da isotopia, em Umberto Eco: nesses termos, não pensamos esta questão, partindo da idéia da realização textual da narrativa, em sua relação estrita com a modulação seqüencial dos eventos e agentes da história, mas a uma característica outra de sua atualização, e que já se manifestara em outros textos que abordamos no início de nosso percurso pela disciplina. 

Em especial, a noção de “discurso” que aqui nos concerne tem algo a ver com as etapas imediatamente anteriores de nossa exposição – portanto implicando os problemas associados ao papel específico de estruturas actanciais (compreendendo particularmente a função dos agentes) em seus modos de promover não apenas as disjunções e desenlaces do enredo, mas naquele sentido em que os horizontes de avaliação desses papéis dos personagens implicam ou significam determinados pontos de vista (tanto dramáticos quanto valorativos) de nossa identificação com a evolução da trama. 

Por exemplo, no texto de Gérard Genette sobre as fronteiras da narrativa (do qual tratamos logo no início de todo esse caminho), um dos aspectos através dos quais a narrativa é estipulada como um objeto distinto de estudo mais sistemático diz respeito aos modos de sua atualização, na forma de um discurso, isto é, de uma fala sobre as ações que se restitui a seus devidos sujeitos (especialmente o narrador): com isto, Genette nos chama a atenção para uma recorrente diferenciação que se estabelece nos estudos literários e da linguagem entre, de um lado, o universo da “história” (a ordem dos eventos reais ou fictícios referidos pela narrativa) e, de outro, o do “discurso” (o de sua atualização, através de atos de enunciação de um narrador ou de instância a ele assemelhada). 

“Esta divisão corresponde aproximadamente à distinção proposta recentemente por Émile Benveniste entre narrativa (ou história) e discurso, com a diferença que Benveniste engloba na categoria do discurso tudo que Aristóteles chamava imitação direta, e que consiste efetivamente, ao menos por sua parte verbal, em discurso emprestado pelo poeta ou narrador a um de seus personagens.” (GENETTE, 2009: 278) 

No centro desta distinção, operaria uma atenção sobre os limites que se podem estipular entre um sentido mais “transparente” da narratividade, de um lado (aquele oferecido pelo regime mais “canônico” da narrativa ficiconal, com um narrador em terceira pessoa, possivelmente não sendo um dos agentes da diegese), e os aspectos de sua atualização que trazem a noção de uma “mediação discursiva”, de outro - como emergem nos registros mais “documentais” ou “factuais” da representação da atualidade histórica, em que a narração se implica como instância da fala narrativa. Uma vez mais, esse é um problema que já visitamos, com apoio do próprio Genette, ao comentar as diferenças entre regimes miméticos e diegéticos da representação narrativa - mas que o próprio autor reelabora, anos mais tarde, sob a guarda de se definir a modalidade própria ao discurso narrativo:

"Este problema foi abordado pela primeira vez, segundo parece, por Platão, no livro III da República. Como se sabe, Platão opõe aí dois modos narrativos, segundo o 'poeta fala em seu nome sem procurar fazer-nos crer que é um outro que não ele quem fala' (e é aquilo a que ele chama de narrativa pura, haplé diegésis) ou, pelo contrário, 'se esforça por dar a ilusão de que não é ele quem fala', mas uma personagem, se se tratar de falas pronunciadas: e é o que Platão chama propriamente a imitação ou mímese (...). Nesses termos, provisoriamente adotados, a 'narrativa pura' será tida por mais disntante' que a 'imitação': diz menos, diz de uma forma mais mediata." (GENETTE, 1989: 160, 161)

Na perspectiva em que Barthes discorre sobre essas modalidades, estamos diante de um aspecto das estruturas actanciais do discurso narrativo pelos quais se definem os modos como a comunicação narrativa envolveria uma maior ou menor implicação da instância do narrador - ou alternativamente, sua transferência para o âmbito das personagens da história: é neste sentido que ele defende que, no sistema da narrativa, o lugar dessa transmissão se defina por uma modalidade "pessoal" ou "apessoal" da narração - como no exemplo que aporta sobre o início de Goldfinger, de Ian Fleming:

"...assim, a frase 'ele percebeu um homem de uns cinquenta anos, de porte ainda jovem, etc.', é perfeitamente pessoal, a despeito do ele ('Eu, James Bond, percebi que...'), mas o enunicado narrativo 'o tilintar do gelo contra o vidro pareceu dar a Bond uma brusca inspiração' não pode ser pessoal, em virtude do verbo 'parecer' que se torna signo do apessoal (e não o ele). É certo que o apessoal é o modo tradicional da narrativa, a língua tendo elaborado todo um sistema temporal próprio da narrativa (articulado sobre o aoristo), destinado a afastar o presente daquele que fala." (BARTHES, 2009: 51)

Nesse sentido, o caráter em que a sucessão dos eventos se apresenta como que destituído dos sinais mais expressos de sua condução por uma “voz” ou por um “ponto de vista” pareceria caracterizar a unidade própria da narrativa, enquanto gênero “poético” de representação - ao menos na herança da classificação que herdamos de Platão e Aristóteles – justamente por exprimir esse sentido de uma intransitividade de seus modos de exposição: apenas no âmbito de outros gêneros poéticos (como na Lírica, na Pedagogia ou, por paradoxal que seja, o da História) é que se concederia essa explicitação das vozes enunciativas que caracteriza o “discurso” enquanto operação mais evidente de uma “fala” poética – ou, em termos contemporâneos, de uma “produção discursiva”. É nesses termos precisos que o problema do “discurso” emergiria como a última das “fronteiras” a se interpor aos estudos da narrativa, no sentido de conferir-lhe o aspecto de maior clarificação de sua conceituação (do mesmo modo como o mesmo Genette estipulara para a “mimese”, em relação à “diegese”, como vimos no início do curso). 

“Caso consideremos tudo o que se encontra excluído do poético por essa decisão, veremos desenhar-se uma última fronteira narrativa, que poderia ser a mais importante e a mais significativa (...): o que possuem em comum todos os excluídos da Poética é que sua obra não consiste em imitação, por narrativa ou representação cênica, de uma ação, real ou fingida, exterior à pessoa e à palavra do poeta, mas simplesmente em um discurso mantido por ele diretamente e em seu próprio nome.” (GENETTE, 2009: 277). 

Estas distinções emergiriam sobretudo em função da assimilação que Genette fazia das idéias do lingüista francês (de origem síria) Émile Benveniste sobre as implicações entre tal transparência dos acontecimentos e os regimes da “história” e o fato de que o “discurso” estaria identificado com a maior explicitude das mediações dos sujeitos falantes: neste contexto preciso, trata-se de uma separação entre “história” e “discurso”, demarcadora do modo como certas formas gramaticais aí empregadas (pronomes próprios e demonstrativos, advérbios e tempos verbais) poderiam ser examinadas, no contexto em que o sentido de objetividade de certas ordens enunciativas cederia seu espaço às características de uma enunciação mais pautada na posição subjetiva da enunciação e da elocução discursivas. 

“Todo esse domínio imenso da expressão direta, quaisquer que sejam seus modos, seus torneios, suas formas, escapa à reflexão da Poética, enquanto negligencia a função representativa da poesia. Temos aí uma nova divisão, de uma amplitude muito grande, pois que divide em duas partes de importância sensivelmente igual, o conjunto do que chamamos hoje literatura.” (GENETTE, 2009: 278). 

2. Pois bem, aqui também se atualizam as diferenças entre “discurso” e “historia” ou, se se quiser, entre “discurso” e “narrativa”, em especial naquilo que concerne a introdução dos elementos de uma maior subjetivação da ordem discursiva, quando a instância enunciadora da narrativa é oportunamente explicitada no primeiro plano do discurso, sobretudo em virtude da necessidade de manifestar as tais condições de uma mediação discursiva. Tudo isto tem enorme rebatimento sobre as questões que Genette recupera de uma linguística do discurso em Benveniste, como se vê nesta passagem : 

“Quaisquer que sejam os detalhes e as variações de um idioma a outro, todas estas diferenças se reduzem claramente a uma oposição entre a objetividade da narrativa e a subjetividade do discurso; mas é preciso indicar que se trata no caso de uma objetividade e de uma subjetividade definida por critérios de ordem propriamente linguística: é ‘subjetivo’ o discurso no qual se marca, explicitamente ou não, a presença de (ou a referência a) eu, mas este eu não se define de nenhum modo como a pessoa que mantém o discurso, do mesmo modo que o presente, que é o tempo por excelência do modo discursivo, não se define de nenhum modo como o momento em que o discurso é enunciado (…). Inversamente, a objetividade da narrativa se define pela ausência de toda referencia ao narrador : ‘para dizer a verdade, o narrador não existe mesmo mais. Os acontecimentos são colocados como se produzissem à medida que aparecem no horizonte da historia. Ninguém fala aqui ; os acontecimentos parecem narrar-se a si próprios’”. (GENETTE, 2009: 278,279). 

Mas é o proprio Genette quem nos adverte para não tomarmos uma tal distinção de registros, a ferro e a fogo, por assim dizer : num contexto narrativo determinado, a explicitação das instâncias discursivas pode cumprir, inclusive, funções auxiliares à poiésis dramática na qual ela está incluída; inversamente, em gêneros fortemente “discursivos” (como no caso do jornalismo), a intrusão de uma narratividade imediata do acontecimento, na qual a instância da locução pode ser apagada até o ponto em que se torna difícil distingüir o relato histórico ou factual daquele que é mais próprio à ficção, também pode ser explanado por razões ligadas às necessidades internas do próprio gênero enunciativo praticado no relato factual mais anódino. 

Jornal Nacional - Escalada da edição sobre a eleição do Papa Francisco (13/03/2013)
de 0:12 a 1:33 

Se analisarmos alguns aspectos da enunciação da escalada e do início da apresentação do noticiário desse dia, podemos notar como é que o registro jornalístico desta história necessita freqüentemente restituir as marcas mais fortes da posição subjetiva do discurso. Concentremo-nos, então, sobre as passagens das primeiras falas dos âncoras William Bonner (no estúdio) e Patrícia Poeta (no Vaticano), na qual são apresentadas as principais notícias do dia, com ênfase (já sugerida pela própria posição in loco da âncora) na eleição do novo Papa. Um primeiro traço dessa condução da elocução pelo registro mais "discursivo" (relativo aos sujeitos falantes) do que "histórico" (referente aos eventos reportados) é o fato de que as instâncias enunicativas são chamadas ao primeiro plano das falas (nomes dos repórteres e âncoras, título do jornal, tanto através da fala dos agentes quanto pelos recursos paratextuais do título e das marcas do telejornal). 

“A ‘subjetividade’ de que tratamos aqui é a capacidade do locutor para se propor como ‘sujeito’. Define-se pelo sentimento que cada um experiemnta de ser ele mesmo (esse sentimento, na medida em que podemos considerá-lo, não é mais que um reflexo) mas como a unidade psíquica que transcende à totalidade das experiências vividas que reúne, e que assegura a permanência da consciência (...). Encontramos aí o fundamento da ‘subjetividade’ que se determina pelo status linguítico da ‘pessoa’” (BENVENISTE, s/d: 286) 

3. Um aspecto da sutileza entre os dois registros da enunciação (o “discursivo” e o “histórico”) é o dos tempos verbais que definem a predominância de um registro mais próximo da história ou do discurso: se pensarmos no exemplo da escalada do Jornal Nacional no dia do anúncio da eleição do Papa Francisco, poderemos notar como esta questão da instância discursiva do relato histórico se manifesta, por exemplo, na adoção dos diferentes tempos verbais que caracterizam, de um lado, a escalada das notícias, na abertura do telejornal, e a matéria propriamente dita, por outro lado - quando entramos definitivamente no regime enunciativo mais característico da programação. 

Predominam, no primeiro caso, os tempos associados a uma espécie de “efeito de testemunho direto”, característico do presente do indicativo e do presente contínuo (“a Igreja Católica escolhe seu novo líder”, “O Jornal Nacional conta a história do Cardeal Bergólio”), até o anúncio, em gerúndio, do início das notícias (“O Jornal Nacional está começando”), ao passo que, no segundo, entramos num tipo de transitividade que é caracteristicamente instituído pela remissão dos fatos ao passado, nos modos próprios do perfeito (“a Igreja Católica apresentou ao mundo o seu novo líder”, “a fumaça branca apareceu no telhado da capela Sistina”). O que se manifesta, pelo emprego da remissão verbal ao universo das ações, é a mesma alternância que caracteriza, no recurso pronominal da perspectiva, a oscilação entre a transparência histórica da narrativa e a circunstância mais pessoalizada do discurso. 

“De uma ou de outra maneira, a língua distingue sempre ‘tempos’, quer seja um passado e um futuro, separados por um ‘presente’, como em francês : ou um presente-passado oposto a um futuro, ou um presente-futuro distinto de um passado, como em diversas línguas ameríndias, podendo estas distinções por sua vez depender de variações de aspecto, etc. Sempre, porém, a linha de participação é uma referência ao ‘presente’. Ora, esse ‘presente’, por sua vez, tem como referência temporal um dado lingüístico: a coincidência do acontecimento descrito com a instância do discurso que o descreve. A marca temporal do presente só pode ser interior ao discurso. O Diccionaire Générale define o presente como o ‘tempo do verbo que exprime o tempo em que se está’.” (BENVENISTE, s/d : 289). 

Assim sendo, nem o regime transparente da ficção está imune a recursos que o façam parecer mais subjetivado, tampouco o caráter factual da história pode ser completamente subtraído às condições nas quais ele é apresentado como puramente narrativo. Nos dois casos, o que se deve destacar como elemento central na justificação destas oscilações é algo que concerne a uma dimensão mais “pragmática” da significação destes regimes discursivos : no texto de Genette, estas questões são motivadas por problemas que, em última instância, interessariam a um percurso histórico das diferentes estilísticas literárias, em seus modos variados de, por assim dizer, introduzir o autor na trama da própria narração, do ponto de vista de sua atualização linguística. 

4. De um lado, é fato que as questões relativas à explicitude da enunicação parecem evocar as diferenciações de gêneros discursivos (tais com aquelas que separam a “ficção” literária ou audiovisual com respeito à “história” que demarca do registros da narrativa factual do jornalismo, por exemplo): é por essa razão que preferimos entrar primeiramente no problema dos regimes discursivos da narrativa, através da consideração sobre as formas através das quais as marcas da enunicação são, por assim dizer, devidamente apagadas ou elididas da leitura, para o bem de seu melhor desenvolvimento. 

“Nesse grau de pureza, a dicção própria da narratuva é de certa forma a transitividade absoluta do texto, a ausência perfeita (...), não somente do narrador, mas também da própria narração, pela eliminação rigorosa de qualquer referência à instância de discurso que o constitui. O texto está aí, sob nossos olhos, sem ser proferido por ninguém, e nenhuma (ou quase) das informações que contém exige, para ser compreendida ou apreciada, de ser relacionada com sua fonte; avaliada por sua distancia ou sua relação ao locutor e ao ato de locução.” (GENETTE, 2009: 280) 

Pois então, na transparência da enunciação ficcional não há, rigorosamente falando, ausência de discurso, mas apenas seu eventual ocultamento - ou então opacidade. Razão pela qual o estudo das formas discursivas na ficção freqüentemente trabalha contra o sentido expresso de sua apresentação, favorecendo assim uma atenção analítica a detalhes insignificantes do registro discursivo. 

Ismail Xavier, “O narrador no cinema” (2017) 

Ainda assim, devemos começar por casos em que o universo da história se apresenta - de algum modo qualquer que seja – condicionado pela maior explicitude de uma voz que guia ou pontua a evolução dos eventos: para não ficarmos por demais capturados no exemplo de nosso universo de referência ficcional explorado até aqui (o caso do filme Stranger than Fiction), buscaremos aqui apoio em um outro exemplar mais “clássico” desse mesmo recurso a uma voz exterior - muito embora tal efeito de sua excentricidade, com respeito ao universo dos agentes narrativos, seja igualmente enganador, ao fim das contas (que é inclusive o que faz a sua graça específica ou exemplar: 

American Beauty, dir. Sam Mendes (1999) – seqüência inicial 

Do mesmo modo que em Stranger than Fiction, a exposição da voz narrativa se constitui aqui como parte de uma estratégia global de jogo narrativo com as competências da recepção, no sentido de uma desnaturalização eventual de sua função mais vernacular em outros gêneros discursivos: em ambos os casos, o recurso da voz em off faz um deslocamento entre a “naturalidade” com a qual incorporamos por hábito espectatorial sua inserção, enquanto elemento “extradiegético” (portanto externa aos agentes e aocntecimentos da fábula) e a eventual explicitação de sua posição actancial, no interior dos eventos (quando passa a operar como instância “intradiegética” da condução da história). O fato de que o portador desta voz afirma expressamente que está morto, no momento mesmo em que conta sua história é um fator de estranhamento relativo. 

Nos interessa, portanto, avaliar precisamente o modo como a enunicação em off exemplifica à perfeição esse aspecto pelo qual pretendemos introduzir - mediante a categoria de “discurso” - o problema das funções actanciais cumpridas pela enunciação, nas narrativas ficcionais: mesmo não se constituindo como efetivos “agentes” da história, ainda assim a narração pode ser pensada no quadro das “estruturas actanciais”, abordadas na sessão anterior do curso; mesmo quando não explicitadas enquanto tais, em função das necessidades do gênero discursivo, para promover a sucessão dos eventos, como quadro semântico fundamental da compreensão narrativa, tais instâncias subtraídas do enredo ainda assim podem cumprir uma função dentro de tais estruturas da compreensão da ação – podendo por vezes se deixar substituir (seja por deslocamento metafórico) ou então encarnarem-se (por condensação metonímica) em figuras actanciais de personagens. 

O fenômeno pode ainda se profundar mais, quando consideramos aquilo que a narração pode efetivar, enquanto quadro da compreensão da história, mesmo quando não explicitada como posição expressamente orientadora dos eventos narrados: ela pode assim instituir no universo dos actantes as condições mediante as quais a compreensão da sucessão pode ser avaliada, a partir de certos quadros cognitivos, especialmente o da ignorância sobre aspectos da evolução da trama. 

Tal é o caso, por exemplo, de personagem de Lina em Suspicion, de Alfred Hitchcock: mesmo não se constituída como narradora dos eventos (já que a história é desenvolvida inteiramente a partir de uma perspectiva de “focalização externa” ou objetiva), é pelo modo como sua condição de ignorância sobre as motivações de Johnny é narrativamente construída que podemos estipular o modo discursivo pelo qual o suspense do enredo evolui na sucessão dos eventos; se o tema da história é tal “suspeita”, sua encarnação mais perfeita encontra-se nesta agente, sendo que as oscilações da trama são perfeitamente conferidas a nós, espectadores, pelo modo como a posição de Lina é assimilada enquanto condição para o acompanhamento da trama. Assim sendo, Lina metonimiza uma instância discursiva, na condição mesma de agente narrativa: sem ser rigorosamente uma narradora, é através de seus estados de ânimo e de cognição que somos devidamente instruídos no perscurso da intriga hitchcockina. 

4. Segundo Genette, agora delineando mais profundamente essas funções do discurso narrativo (em seu livro Discurso da Narrativa), tais casos ilustram as condições ou estratos da narrativa mediante os quais a modulação dos níveis da história depende de uma mediação constituída por posições expressas ou sugeridas de sua elocução: ele as nomeia como operando nas ordens do “tempo” e do “nível” narrativos e também do da “pessoa” - pretendendo com isto estipular os espaços textuais nos quais não apenas a compreensão (do ponto de vista da leitura e da recepção), mas igualmente a concepção da narrativa (do ponto de vista da teoria) assumem contornos mais ou menos definidos e analiticamente determináveis. 

Se, nas sessões anteriores, chegamos à conclusão de que narrativas implicam uma “sucessão” de eventos, dotadas de “interesse humano”, sempre contendo “agentes” e suas “intenções”, organizados na forma de um princípio discursivo que delimita porções de fábula como correspondendo aos topics e a forma da intriga ou do enredo como representando uma organização isotópica ou emanticamente coerente, agora podemos acrescentar a tais condições da discursividade narrativa a devida postulação dos lugares enunciativos (sejam estes expressos ou implícitos), através dos quais se possa dizer que “onde há narrativa, há narração”. 

“É esse gênero de incidências que vamos considerar sob a categoria da voz - ‘aspecto (...) da ação verbal considerada nas suas relações com o sujeito’ – não sendo este sujeito aqui somente aquele que realiza ou sofre a ação, mas também aquele (o mesmo ou um outro) que a relata e, eventualmente, todos aqueles que participam, mesmo que passivamente, nesta atividade narrativa.” (GENETTE, 1979: 212) 

Como exploraremos a questão das estruturas temporais da narração na próxima sessão do curso, vamos nos deter agora sobre a questão das relações entre narração e estruturas actanciais (nesses termos, sobre as dimensões da voz que sinalizam “níveis narrativos” e a “pessoa” do narrador), mais evidentemente perceptíveis como relação entre o trabalho da enunciação narrativa e os agentes da fábula - seja na sua condição de “personagens” ou de “níveis” narrativos: no último caso, isso implica considerar os diferentes posicionamentos (ou regimes de “focalização”) da voz narrativa, conforme esteja mais afastada dos agentes e das situações da trama (caso em que se define como narração “objetiva”), ou então como implicada no universo ficcional como um de seus agentes (caracterizada como focalização “interna”), ou finalmente enquanto espécie de onisciência, com capacidade para acessar estados interiores das personagens e destinos presumidos dos eventos (designada como regime de “focalização zero”). 

Se considerarmos apenas os casos exmaminados até aqui de narrativas audiovisuais que implicam uma enunciação em off, estas exemplificariam falsas instâncias de níveis de focalização “zero”, mas que se convertem mais rapidamente (como em Stranger than Fiction) como regimes “intradiegéticos” de enunciação narrativa. Mas podemos encontrar casos em que esse mesmo recurso não implica deslocamentos eventuais dos regimes pragmáticos da focalização, mantendo-os assim em um mesmo patamar, pela extensão integral da evolução dos acontecimentos. Em alguns casos (como é exemplar em filmes policiais, de tipo noir), as próprias regras do gênero discursivo da história auxiliam na determinação e na durabilidade dessa junção entre a posição enunciativa e as estruturas actanciais, já que é evidente que a voz do personagem funciona como reforço ou comentário parentético àquilo que acompanhamos através do regime visual da sucessão dos acontecimentos. Trata-se do caso desse exemplar clássico de um recurso a esta instância de narração instalada no primeiro nível (extra-diegético) e que, no arremate da história, nos é finalmente apresentada como coincidindo com um o próprio personagem que ela mesma nos apresentara com não coincidente consigo mesma, alterando o regime de focalização do primeiro para o segundo nível (intra-diegético): 

Sunset Boulevard, dir. Billy Wilder (1950) – sequência inicial 

Um efeito significativo desse tipo de procedimento, relativamente aos “níveis” narrativos (ou aos regimes de “focalização” que caracterizam a posição da narração em relação ao enredo dos acontecimentos) diz repeito ao fenômeno da distribuição de sabres sobre a fábula que é propiciado por cada um desses níveis: a passagem do nível “extradiegético” para o “intradiegético” se coloca como parte das estretégias do discurso narrativo para situar seus leitores/espectadores em diferentes condições da apreensão sobre o estado global da fábula, conforme esta se apresente para nós de modo mais “objetivo” ou pautada pela “subjetividade” de um personagem. 

Nesse sentido, diferentemente da focalização em “grau zero”, não podemos saber mais do que o próprio personagem sabe, o que gera efeitos próprios desse nível intradiegético da enunciação narrativa – que podem ser abordados quando consideramos a relação entre tais procedimentos de enunciação e os horizontes de compreensão presumida do espectador. Nesses termos, o caso de Sunset Boulevard e American Beauty representam recursos completamente distintos daquele que já examináramos em Stranger than Fiction: nesse caso, a narração nos oferece pistas de que ela é efetivada a partir de níveis distintos daqueles nos quais a narração é dada a partir de uma instância interna à fábula, para que apenas depois revelem-se a nós como instâncias efetivas do universo ficcional (como agentes no interior da fábula). 

5. De todo modo, esse jogo entre os níveis da narração é constitutivo do trabalho pelo qual o discurso - ou o trabalho da enunciação - é assumido como aquilo que conduz a evolução dos eventos, mesmo quando não é expressamente constituído enquanto figura empírica da narrativa: tal é um aspecto que Ugo Volli destaca em sua caracterização das funções da focalização e de seus níveis – algo que já examinamos nos exemplos dessas operações cambiantes com respeito ao lugar no qual a instância narrativa se situa: 

“Às vezes um texto introduz dentro de si mesmo uma alteração da perspectiva, ‘traindo’ o tipo de focalização sobre o qual se fundamenta. Por exemplo, pode ocorrer que uma narração de focalização interna deliberadamente omita fornecer ao leitor uma informação importante ou um pensamento do protagonista focalizado (esta omissão é chamada paralissi): caso clássico é o romance De Nove às Dez, de Agatha Christie, no qual até o final o texto deixa de dizer que o culpado do homicídio é exatamente o focalizador.” (VOLLI, 2007: 96) 

Nesses termos, é sempre mediante uma posição discursiva da atualização narrativa que o universo ficcional da história pode ser estipulado, e de nenhum outro modo - a não ser nas suas transgressões, como aquelas que Genette discute, ao tratar das “metalepses”, quando a própria questão da enunicação é problematizada no enredo (como é em certa medida, o caso de Stranger than Fiction): em condições normais ou canônicas de seu estabelecimento, isto significa que mesmo os eventos que são apresentados em um certo regime de transparência (focalização objetiva) ou onsisciência (focalização zero) implicam um certa posição da voz enunciativa a partir da qual a evolução dos acontecimentos é sinalizada (mesmo que discretamente) pela narração. Assim sendo, o único efeito previsível da mudança entre níveis concerne ao grau no qual o conhecimento sobre o destino da história pode ser partihado entre as instâncias da narração, dos agentes e do leitor. Uma vez mais, ilustramos o ponto com a sequencia final de Sunset Boulevard, quando descobrimos que o protagonista da fábula é o narrador da história – situado na condição de defunto, afogado na piscina de uma mansão: 

Sunset Boulevard, dir. Billy Wilder (1950) – sequência final 

Apenas sob esse aspecto, em princípio, podemos dizer que a explicitude ou não da instância narrativa tem significação, com respeito aos quadros actanciais da história - informados normalmente pelo universo de seus caracteres ou personagens: essa condição pode ser instituída de saída, em casos como Moby Dick, de Herman Melville (cuja primeira sentença já
acusa para o leitor a posição discursiva da história, como sendo aquela do único sobrevivente do baleeiro Pequod: “Meu nome é Ismael”); ou ainda, de modo incrivelmente sintético e sugestivo, em Grande Sertão: Veredas, indicando que os acontecimentos narrados na história são apenas a expressão da fala de Riobaldo a um interlocutor desconhecido (quem sabe, nós mesmos), fazendo Guimarães Rosa uso apenas do recurso gráfico do travessão para iniciar o romance, indicando-o como fala do agente principal: “ – Nonada.”. 

Em suma, ao tratarmos da questão da voz narrativa, no âmbito em que ela mobiliza o plano da “pessoa”, precisamos nos afastar, segundo Genette, da suposição de que estas sejam figuras puramente gramaticais da primeira e da terceira pessoas, definidas como instâncias narrativas. Ao invés disto, ele solicita que as concebamos no plano em que elas componham ou não o universo da história, enquanto agentes: no primeiro caso, serão designadas como “homodiegéticas”; no segundo, serão “heterodiegéticas”. Nesse sentido, podemos dizer que é assim que se coligam, ao menos no plano das formas ficcionais, a questão da instituição da “voz narrativa” e as “estruturas actanciais” da história: elas concernem à economia textual na qual, precisando ser conduzidas por alguma instância, a narração se institui a partir de algum espaço agenciador da evolução das ações. 

“A verdadeira questão é a de saber se o narrador tem ou não a ocasião de empregar a primeira pessoa para designar uma de suas personagens. Distinguir-se-ão, pois, dois tipos de narrativas: uma de narrador ausente da história que conta (...), a outra de narrador presente como personagem na história que conta.” (GENETTE, 1979: 243,244). 

Tais questões, contudo, afetam – de maneira significativamente distinta – os regimes da narração nos quais o problema do universo da história não é constituído por atos de imaginação de um narrador/autor, mas implicam também o modo como o universo factual se constitui para o trabalho da enunciação e de atualização narrativa: podemos resguardar alguns dos elementos da organização do discurso narrativo na ficção para esse fim, mas apenas de maneira condicionada. Estes são, contudo, aspectos e temas que não poderemos enfrentar noe scopo determinado pela disciplina nesse semestre - devendo assim ficarem reservados para outra oportunidade, em outras disciplinas. 

Referências Bibliográficas: 
BARTHES, Roland. "Introdução à análise estrutural da narrativa". In: Análise Estrutural da Narrativa: pp. 
GENETTE, Gérard. “Voz”. In: Discurso da Narrativa: pp. 211, 260; 
VOLLI, Ugo. “Histórias”. In : Manual de Semiótica: pp. 91,134. 

Leituras Recomendadas: 
BENVENISTE, Émile. “Da subjetividade na linguagem”. In : Problemas de Linguística Geral: pp. 284, 293; 
GENETTE, Gérard. “Fronteiras da narrativa”. In: Análise Estrutural da Narrativa: pp. 265, 284. 

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