Notas da última sessão do curso (09/07/2025): Entrecruzamentos da história e da ficção (P.Ricoeur, R.Baroni, J.Gritti)

Introdução às Teorias da Narrativa (GEC 114)
Aula no 11 (09/07/2025)

 

Entrecruzamentos da História e da Ficção: o caso da ordenação narrativa na mediatização da atualidade histórica (P.Ricoeur, J. Gritti e R.Baroni)

 

1. No último ponto de nossa exploração às teorias da narrativa, chegamos finalmente aos enlaces que caracterizam a pregnância discursiva que caracteriza os modos de organização narrativa sobre atualidades históricas, particularmente próprias ao discurso mediático – e que ilustram com eloquência fenômenos de “entrecruzamentos” que caracterizam os enlaces entre discursos factuais e ficcionais: de um lado, trata-se de pensar os aspectos em que a estrutura mesma do contar implica uma espécie de inevitabilidade do histórico enquanto figuração estratégica das coordenadas temporais da narratividade. Por outro lado, o que é mais importante, esse fenômeno sinaliza certos aspectos da construção de uma hipotética – mas ilusória – objetividade dos saberes históricos, na medida mesma de sua eventual captura por procedimentos de reconstrução do passado (através de fontes, indícios e testemunhos) que não pode dispensar certas armaduras conceituais da narratividade ficcional.

 

Esta relação fronteiriça entre “narrativa” e “história” já se encontrava no modo como Gérard Genette insinuava criticamente que, em certos contextos, o aspecto temporalmente decorrido das ações narradas pertenceriam mais à instância da “história” que à do “discurso” narrativo – isto é, seriam da ordem dos “assuntos” ou acontecimentos narrados, e não dos modos como estes são arranjados discursivamente. Como poderíamos interpretar, então, esta sobreposição de categorias, implicadas no fenômeno do “entrecruzamento”? Como podemos avaliar a interpenetração da “história” e da “narrativa”, quando consideramos o passado ou o presente factuais? Aquilo que é designado pela “história” se definiria, em certa medida, por um caráter de manifestação independente dos atos da enunciação sobre acontecimentos: uma vez oposta ao discurso, a narrativa significa a partir de um modo de manifestação no qual a subjetividade da enunciação não determina o processo pelo qual os eventos se desenvolveriam no discurso sobre fatos:

 

“...a objetividade da narrativa se define pela ausência de toda a referência ao narrador: ‘Para dizer a verdade, o narrador não existe mesmo mais. Os acontecimentos são colocados como se produzem à medida que aparecem no horizonte da história. Ninguém fala aqui; os acontecimentos parecem narrar-se a si mesmos’” (GENETTE, 2009: 279).

 

No caso das abordagens privilegiadas pelo texto de Genette, entretanto, o caráter “histórico” pelo qual se diferenciam os universos de acontecimentos narrados e o discurso que os atualiza só exprime esse conceito de “história” por contraste: isto é, ele vale apenas na medida de sua distinção com respeito à necessária subjetividade do discurso. Nesse contexto de um exame restrito à poiésis literária, a instância da “história” não é problematizada em sua dimensão forçosamente temporalizada através do discurso narrativo. Em outras palavras, para chegar ao conceito de “história” que interessa a uma teoria da ficção (atualizada em personagens, exprimindo a ação com uma transitividade absoluta e própria àquilo não parece ser guiado por qualquer força intencional interna aos eventos), as teses de Genette ainda não concedem à narrativa sua relação com um modo de consciência, constituído na relação com a significação temporal das ordens do ser.

 

2. Não obstante certa negligência das teorias da narrativa em problematizar o estatuto dos “universos” narrativos (em benefício de suas “armaduras” textuais), a organização das ações e dos acontecimentos que definem uma narrativa enquanto tal (mesmo aquelas da ficção) modulam o tempo destas ocorrências de tal modo que nelas aquilo que é da ordem do “histórico” pode se definir como condição de possibilidade mesma da discursividade narrativa: assim sendo, devemos considerar tal relação constitutiva do narrar com a história, como implicada na admissão, por exemplo, de uma consciência temporal dos acontecimentos, em estreita correlação com as estruturas de espacialização tópica das narrativas. 

 

Em primeiro lugar, precisamos distinguir este sentido “histórico” do narrar com respeito a admissão de uma estrita e efetiva “factualidade” dos acontecimentos encontrados numa narrativa: não é, portanto, o caso de supor que os eventos narrados na ficção assumem sua significação por coordenarem-se com condições de reconhecimento prévias, ditadas por uma certa publicidade assumida pelo acontecimento. O “histórico” aqui designa um lastro da “temporalidade” que estrutura a narrativa, como coordenadas para nossa compreensão: a constituição de um acontecimento se define como “histórica” pelo modo como nela vemos a ordem dos eventos ficar submetida a uma cronologia, como no exemplo seguinte do início desse romance de Paul Auster, O Livro das Ilusões

 

“Todos achavam que ele tivesse morrido. Quando meu livro saiu, em 1988, fazia quase sessenta anos que não se tinha notícia de Hector Mann. À exceção de um punhado de historiadores e amantes do cinema antigo, pouca gente parecia saber que ele existira. Double or Nothing, a última das dozes comédias de curta-metragem que fez já no fim da era dos filmes mudos, foi lançada em 23 de novembro de 1928Dois meses depois, sem se despedir de amigos ou colegas, sem deixar carta ou bilhete nem informar ninguém de seus planos, saiu da casa que alugava na North Orange Drive e nunca mais foi visto. O DeSoto azul estava estacionado na garagem ; a locação era valida por mais três meses ; o aluguel fora pago até o fim do contrato. Havia comida na cozinha, uísque no bar e não faltava uma única peça de roupa nas gavetas e no guarda-roupa. Segundo o Los Angeles Herald Express de 18 de Janeiro de 1929impressão era a de que ele tinha dado uma saída e voltaria a qualquer momento. Mas não voltou, e desse ponto em diante foi como se Hector Mann tivesse sumido da face da Terra.” (AUSTER, 2002: 1)

 

Há no registro desta introdução um esforço em colocar os eventos não apenas dentro de uma certa flexão temporal necessária à compreensão (a construção de uma “perspectiva temporal” para o passado), mas também fazer funcionar no discurso narrativo uma certa ordem de sua topologia que permita a um certo leitor situar a atualidade da trama que se anuncia em um contexto dotado de certas marcas de reconhecimento. Tais operações situam que a relação entre “narrativa” e “história” num espaço de “entrecruzamento” das funções que antes discriminavam o discurso ficcional e o relato factual: para além das condições em que o discurso jornalístico é forçado - pelas regras de seu gênero mais próprio - a explicitar as condições da mediação narrada dos eventos, o aspecto mais decisivo da relação entre estruturas narrativas e a consciência histórica é precisamente aquela em que o caráter existencialmente histórico da estrutura narrativa impõe iguais condições de nossa relação com o tempo e o ordenamento sucessivo de acontecimentos significativos.

 

“Por entrecruzamento de história e ficção, entendemos a estrutura fundamental, tanto ontológica como epistemológica, em virtude da qual a história e a ficção só concretizam suas respectivas intencionalidades tomando de empréstimo a intencionalidade da outra (…). Vamos mostrar que essa concretização só é alcançada na medida em que, por um lado, a história se serve de alguma maneira, da ficção para refigurar o tempo, e em que, por outro, a ficção se serve da história com o mesmo intuito.” (RICOEUR, 2012 : 311,312).

 

3. Nesta ordem das freqüentações mútuas entre história e da narrativa, podemos preferir a “ficcionalização da história” à “historicização da ficção”: a primeira delas é ligada ao fato de que Paul Ricoeur, de fato, dedica uma maior atenção à primeira – já que pretende dissolver a impressão de que a historicidade decorra da efetiva factualidade do acontecimento, o que nos permitiria tratar deste aspecto da experiência do tempo (por exemplo, no relato autobiográfico) na sua dimensão constitutivamente histórica ou “épica”; em segundo lugar, uma boa parte dos discursos mediáticos que têm a atualidade verídica do acontecimento como aspecto condutor de sua própria estruturação discursiva (é o caso do jornalismo, mas também o da série das formas documentais que permeiam a cultura de nossos dias) dependem enormemente de certos recursos ou estratégias que tradicionalmente se encontram identificadas com o universo da ficção.

 

Para entendermos esse sentido mais profundo da historicidade que inscrevemos ao modo próprio de nos situarmos existencialmente em face do mundo e dos eventos, devemos considerar o sentido em que a estruturação cronológica dos acontecimentos manifeste um impulso (poderíamos até dizer, antropológico) de nos submetermos a um tempo suposto como dado nas coisas e no universo. Ao mesmo tempo, entretanto, mediamos este impulso a partir daquilo que Ricoeur designa como “conectores” - que tornam esta correlação entre tempo e universo mais ou menos maleável (o calendário, que normatiza o sentido cosmológico da passagem regular dos dias; o relógio, que demarca as mudanças da posição relativa do sol). Estes designadores temporais constituem a base sobre a qual se pode construir ou inferir a noção de uma atualidade deítica de um acontecimento, aquela que se pode referir em sua preteridade factual (“isto aconteceu”), na decorrência desta necessária produção de uma temporalidade que emerge como mediação de um tempo das coisas mesmas.

 

“Com base em um sistema periódico de datas, um calendário perpétuo permite alocar uma data, ou seja, um lugar qualquer no sistema de todas as datas possíveis, a um acontecimento que traz a marca do presente e, por implicação, a do passado ou do futuro. A datação de um acontecimento apresenta, pois, um caráter sintético, mediante o qual um presente efetivo é identificado a um instante qualquer.” (RICOEUR, 2012 : 314). 

 

Stranger than Fiction, Marc Foster (2006) – 11 marcas temporais da evolução histórica

 

A narrativa de ficção explicita, por seu turno, estes traços do imaginário pelo qual atuam os conectores que tornam este sentimento do universo uma noção mais precisa de temporalidade que coliga o presente àquilo que o antecede e ao que pode dele decorrer, sendo precisamente no âmbito desta sua função proeminente de nosso imaginário da temporalidade que se pode identificar o cruzamento de que a narrativa ficcional é objeto, quando a história inscreve para este instante o caráter de um fato preciso, fixando nele o eixo de sua própria legibilidade – enquanto fundada neste regime da temporalidade retrospectiva. 

 

“O que constitui precisamente a perenidade de certas grandes obras históricas, cuja confiabilidade propriamente científica foi, no entanto, minada pelo progresso documentário, é a exata adequação de sua arte poética e retórica à sua maneira de ver o passado. A mesma obra pode, portanto, ser um grande livro de história e um admirável romance. O incrível é que esse entrelaçamento da ficção à história não enfraquece o projeto da representância desta última, mas contribui para realizá-lo.” (RICOEUR, 2012: 318)  

 

É nestes termos que podemos identificar esta suposta assimilação do relato histórico à estrutura mais “intrigante” da narrativa ficcional, sem que isto caracterize um prejuízo no valor de verdade de seu discurso. O aspecto “trágico” ou “catastrófico” do assassinato de um presidente não decorre apenas de um empréstimo que as formas discursivas da narração histórica faz ou imita (por aproximação) de uma significação temporalizada do acontecimento que, momentaneamente, não teria como traduzir sua dimensão mais factual ou real: esta apropriação é uma condição da própria historicidade do relato, a marca daquilo que deverá marcar sua significação, na transmissão posterior de que este discurso será finalmente objeto.

 

4. No que respeita a “historicização do ficcional”, podemos explorar o caráter “imaginário” do passado, enquanto estrutura de compreensão comum à história (tanto na relação com o vestígio como em sua função documental) e a narrativa ficcional - através do modo como os tempos verbais funcionam não apenas como marcadores “gramaticais” do regime narrativo, mas como fundando o tipo de relação que devemos manter com um passado que se institui para a perspectiva da enunciação (seja esta histórica ou ficcional). 

 

É assim que Ricoeur identifica, através das ideias de Harald Weinrich sobre as construções discursivas da história, a diferença entre o narrar (“erzahlen”) e o comentar (“besprechen”), expressas exatamente através dos recursos de diferentes tempos verbais – e que implicariam, de modo mais forte ou tênue, nossa implicação existencial naquilo que é relatado (além do fato de que o passado, nesses casos, significa a perspectiva instaurada pela voz narrativa, única instância situada no presente, relativamente aos acontecimentos narrados).

 

“Caso essa hipótese proceda, pode-se dizer que a ficção é quase histórica, tanto quanto a história é quase fictícia. A história é quase fictícia sempre que a quase presença dos acontecimentos colocados ‘diante dos olhos’ do leitor por uma narrativa animada suprir, por sua intuitividade e sua vivacidade, o caráter elusivo da preteridade do passado, que os paradoxos da representância ilustram. A narrativa de ficção é quase histórica na medida em que os acontecimentos irreais que ela representa são fatos passados para a voz narrativa que se dirige ao leitor; é por isso que se parecem com acontecimentos passados e que a ficção se parece com a história.” (RICOEUR, 2012: 325)

 

Um segundo aspecto dessa “historicização da ficção concerne aos fundamentos “modais” da composição da intriga: voltando-se aqui aos preceitos aristotélicos, Ricoeur identifica o emprego poético dos regimes da probabilidade, enquanto fundantes da compreensão das ordens temporais da eventualidade narrativa, como sendo “quase-históricas”. Não se trata apenas de uma separação entre “efetividade” e “possibilidade” do passado (que construiria uma separação axiológica e ontológica entre planos da história e da ficção, valorizando uma concepção puramente deítica da mimesis histórica), mas a articulação entre o “ter-sido” do passado com seu “poder-ser” (este último instituído pelos pactos próprios à ficção narrativa), como traço persuasivo da construção de uma posição enunciativa das histórias.

 

“A verdadeira mímesis da ação deve ser buscada nas obras de arte menos preocupadas em refletir sua época. A imitação, no sentido vulgar no termo, é aqui o inimigo por excelência da mimesis. É precisamente quando uma obra de arte rompe com esse tipo de verossimilhança que revela sua verdadeira função mimética. O quase-passado da voz narrativa se distingue então totalmente do passado da consciência histórica. Identifica-se em contrapartida com o provável, no sentido do que poderia ocorrer.” (RICOEUR, 2012: 327)

 

INTERVALO

 

5. Voltemos a alguns casos já explorados até aqui, para desenvolvermos com mais vagar essa questão da construção discursiva de uma narratividade própria aos universos factuais da atualidade histórica: a cobertura televisiva do atentado contra o presidente Kennedy é exemplar desse aspecto quase mitológico com o qual se constrói o suposto de uma referência histórica como condição necessária e suficiente da compreensão, sem qualquer mediação por regimes e estratégias de sentido derivados daquilo que caracteriza a discursividade narrativa que encontramos engajada na ficção literária e cinematográfica, por exemplo. 

 

Nestes termos, encontraríamos a exemplificação daquilo que Ricoeur caracteriza como “entrecruzamentos” da história e da ficção, significando assim que, para além de seus universos de referência se constituírem distintamente, as narrativas ficcionais e factuais não poderiam se definir na absoluta diferença de sua constituição – assim que as pensássemos em suas respectivas discursividades e nos sistemas de temporalizações empenhados nos dois casos para definir seus conteúdos – todos necessariamente assumidos em sua suposta realidade, pelo modo como são referidos a algum passado.

 

Neste contexto preciso, a evocação dos discursos mediáticos se constituiria na centralidade empírica de uma proposição sobre as estratégias narrativas inerentes à mediação que se poderia pretender fazer da factualidade própria ao histórico : o exame continuado das narrativas construídas na atualidade do atentado contra o presidente Kennedy nos mostrou claramente como é que a construção deste sentido factual do acontecimento evocava o emprego de certas características mais marcantes de uma discursividade mais “dramática” do evento, tanto do ponto de vista da excepcionalidade do ocorrido (tiros ouvidos no centro de Dallas, enquanto a comitiva presidencial passava), quanto nos regimes da temporalização pelo qual sua atualidade era recomposta, a partir de cada um dos segmentos de sua consecução (os diferentes segmentos temporais de sua ocorrência, como partes de sua narrativa) ou ainda por sua correlação com outros aspectos de sua compreensão, no plano mais caracteristicamente “histórico” de sua manifestação (as ordens de fatos que decorreriam do evento, assim como aqueles que permitiriam sua melhor compreensão, do ponto de vista de sua “coerência”). 

 

6. Não é o caso de supor que esta forma de abordar a questão da narratividade seja uma novidade, propriamente falando : no momento em que o estruturalismo ensaia fixar algumas das balizas mais importantes do estudo sobre as formas narrativas, é relativamente notável que muitos dos casos reclamados ao estudo naquela oportunidade derivassem precisamente desta confluência entre os acontecimentos históricos e sua evocação por uma estrutura de discursos antes exclusivamente associados ao universo da representação dramática ou ficcional. Ao tratar, por exemplo, da cobertura jornalística sobre a morte do papa João XXIII, Jules Gritti evoca precisamente esta maneira que os jornais da época oportunizaram o processo da doença do Cardeal Roncalli, para produzir um tipo de mediação dos acontecimentos que parecia muito próximo a uma dramatização dos eventos.

 

Com o exame do caso desta cobertura, notamos o quão próximas estão determinadas perspectivas da concepção sobre narrativas, no que respeita vários dos aspectos que abordamos até aqui, em nosso percurso: em primeiro lugar, a ideia mesma de uma hipotética proximidade entre as características da narratividade ficcional e aquela que demarca o histórico enquanto regime de compreensão de uma ordem acontecimental ; em segundo lugar, o fato de que este entrecruzamento possível da ficção e dos fatos se exercita em nome de uma certa redutibilidade do acontecimento à ordem temporalizada da compreensão – de modo que a atualidade factual do jornalismo e a eventualidade imaginária da literatura e do cinema não poderiam ser tratadas em separado, deste particular ponto de vista. A morte do papa, na medida em que se desenvolve como parte de um processo contínuo de sofrimento, apontado permanentemente para sua consumação enquanto destino fatal, favoreceria o pensamento de uma ordem da informação sobre o processo que se exercitaria sobre as mesmas capacidades da produção do suspense que definem o romance ou o drama teatral – sobretudo sem que se desqualifique o caráter de mediação histórica do discurso jornalístico, enquanto tal.

 

“No instante em que o acontecimento é apresentado, o vivido transmuta-se em representado, o dado circunstancial é apreendido segundo as ‘categorias’ da narrativa. Imaginemos um instante que a última doença tenha se reduzido a um longo coma; um mínimo de modulação temporal com signos de agravação ou de melhoramento, numa distribuição das funções ativas ou expressivas em torno do moribundo, teriam, entretanto, parecido necessárias.” (GRITTI, 2009: 171)

 

Quando - ainda segundo Gritti – um eixo da narração se esboça sobre os acontecimento, é porque sobre estes o discurso pôde identificar e trabalhar um núcleo problemático da sucessão das ações, que se manifesta como uma figura paradigmática do “desafio”, da “procura” - e que, no caso da agonia do Papa, é significado pela oposição entre a necessidade da morte como seu horizonte ou a eventualidade de uma cura momentânea, capaz de adiar  este desfecho, ainda que apenas por algum tempo. A oscilação entre estas duas possibilidades (que, a rigor, poderia marcar a tematização de qualquer vida finita, mas que se agrava aqui, levando-se em conta a combinação entre uma doença incurável e a idade avançada do pontífice) constitui a grade sobre a qual não apenas a temporalidade da sucessão dos eventos será trabalhada, em sua chave dramática, mas também se fixarão as características pelas quais a definição dos agentes deste acontecimento será estabelecida - a partir dos vetores pelos quais a relação com este horizonte  “télico” de uma vida em risco ajudará a fixar os valores morais e psicológicos dos personagens envolvidos (e inclusive os narradores da historia, aspecto pelo qual a discursividade narrativa do jornalismo se aproxima de uma certa explicitação literariamente bem “moderna” das instâncias de enunciação da intriga).

 

“Os personagens, exercendo suas funções ativas ou expressões em torno do Sujeito, podem diferir deste quanto ao objeto do desejo ou da aceitação; a Multidão pode desejar a cura, enquanto o sujeito moribundo aceita a morte (e deseja a ‘Vida eterna’). O próprio narrador (jornalista), traçando as orientações de uns e outros, pode significar a sua própria. De fato, as narrativas de morte, na imprensa, atestam que a posição do narrado é ambivalente. A narrativa esboça-se porque a morte é provável, entrevista e preparada como conclusão normal; mas logo o narrador tende a professar o desejo (e a esperança) de uma improvável cura, a conduzir sua narrativa segundo este eixo do desejo. A morte é esperada, a cura ‘desejada’.” (GRITTI, 2009 : 173)

 

7. Mais gravemente, inclusive, todo este conjunto de assimilações, pelas quais a ordem acontecimental do histórico (os fatos do passado ou do presente com os quais o discurso dos meios de comunicação procura se ajustar em seus aspectos de « realidade » verdadeiramente ocorrida) se vê convergindo para uma espécie de indiferenciação ou indistinção ontológica, relativamente aos atos de imaginação pelo qual historias podem ser inventadas, como é o caso da ficção, pois bem, tudo isto parece funcionar como sintoma de um certo interesse mediante o qual o histórico e o ficcional se entrecruzam. 

 

Em nosso campo de estudos, sobretudo, este é o sinal através do qual este conjunto de estratégias narrativas da comunicação do universo factual se vê explanado pelo aspecto da ideologia jornalística do acontecimento, como parte do estado momentâneo de uma estetização na notícia – diagnóstico este que recebe vários tipos de designação como a do “infotainment” do telejornal de nossos dias ; mais gravemente, este conjunto de fenômenos atenta para as variantes ideológicas do capitalismo contemporâneo, que visa conformar a complexidade acontecimental do histórico às variáveis puramente estéticas ou comerciais, que conferem e dignificaram o êxito (medido em termos de comercio e de audiência) do universo jornalístico contemporâneo. De nossa parte, ainda que reconheçamos estas variáveis sociológicas e históricas da evolução dos discursos mediáticos nestes termos da intensificação passional da apresentação dos acontecimentos, nos parece que a atribuição derrogatória feita às variantes “estéticas” do fenômeno, tomadas como signos da degenerescência dos processos de mediação histórica nOS parece injustificada e fora de lugar.

 

Para não incorrermos em uma exacerbação do alcance devido de uma crítica sociológica dos discursos mediáticos, precisamos compreender as economias fundamentalmente cognitivas e pragmáticas no interior das quais este sentido mais “intensificado” da apresentação discursiva do acontecimento - no modo como a temporalidade de seus desdobramento é mobilizada a partir do suspense, por exemplo – se exprime, no sentido de eficácia que lhe é próprio e justificável (seja fenomenologicamente ou mesmo no plano histórico de sua evolução): nestes termos, teremos que considerar, por exemplo, como é que a predominância destas estratégias discursivas mais “passionantes” do discurso mediático se explicita nas condições das proximidades de gênero entre as narrativas de teor mais “historico” e aquelas que dependem fundamentalmente de um apelo às estruturas afetivas e emocionais de seu leitorado – como é o caso dos gêneros dramáticos.

 

Pois é fato, pelo menos para começo de uma conversa, que as narrativas históricas também se exercitam sobre aspectos de uma representação das ações pelas quais se definem os fatos aos quais ela se reporta – os acontecimentos que a constituem, por outro lado, não são apenas ocorrências puramente pontuais, mas segmentos de uma sucessão de eventos, que são operados a partir dos vínculos que se pode supor entre eles. A que título, propriamente falando, podemos dizer que a historicidade de um evento ainda não completamente consumado (como é o caso da maior parte daquilo que interessa ao discurso mediático) implica finalidades que não poderiam ser oportunizadas pelas estratégias narrativas de intensificação passional da intriga, como no caso do suspense ficcional? É nesses termos que Raphaël Baroni sustenta a pertinência da produção do suspense não apenas como traço característico dos discursos ficcionais, mas como perfeitamente justificável, no âmbito das assim chamadas “narrativas mediáticas”.

 

“Em suma, embora se admita que o suspense contribua na melhora das vendas de livros ou jornais, e, para além disso, que seja uma poderosa ferramenta de persuasão, a mim parece ser necessário que haja uma nuance de algumas críticas que lhe foram construídasPara colocá-lo de forma mais simples, estou convencido de que o valor do suspense depende, antes de mais nada, do gênero discursivo que o atualiza, das constrições pragmáticas e da finalidade da interação discursiva.” (BARONI, 2013: 5)

 

Se concebemos o problema da intriga – que parece tão intimamente conectado com aquilo que caracteriza a poética do drama ficcional, que encontramos com frequência na literatura, no teatro e no cinema – como algo que se define pelos aspectos em que o caráter lacunar ou reticente da produção discursiva implica, por sua vez, as capacidades, expectativas e competências de leitura e de inferência que o leitor ou o espectador podem exercitar para fruir o desenrolar ou a resolução daquilo que se apresenta em caráter problemático ou incompleto, pois bem, este aspecto da constituição do discurso ficcional não nos parece ser exclusivo de seus gêneros mais consagrados, mas também podem ser examinados como constitutivos da própria ordem acontecimental abordada pelos discursos mediáticos, dadas as condicnoes em que muito daquilo que circula como horizonte tópico de sua apresentação e das estratégias retóricas que isto envolve implica eventos que se põem na contemporaneidade presente da própria enunciação destes discursos – assim sendo, envolvem as mesmas dificuldades de resolução que, no plano da ficção (ou em certos de seus gêneros, como o romance ou a tragédia), são constituídas originariamente pelos gestos intencionais do autor. 

 

“No prolongamento dos trabalhos que se relacionam com a narratologia retórica e cognitivista, considero que a narrativa é amarrada pela produção de um suspense, quando o evento narrado se articula com virtualidadesalternativas daquilo que poderia ocorrer, mesmo quando o resultado dos eventos já é previamente conhecido (...).De fato, como mostra o trabalho sobre a força resistente do suspense aos processos de releitura das narrativas, este efeito se mantém eficaz, na medida em que o leitor seja capaz de imaginar que o evento que lhe é narrado poderiatomar um destino diferente, mesmo na ausência de uma incerteza sobre este desdobramento.” (BARONI, 2013: 6)

 

9. O texto de Baroni trabalha sobre dois exemplos de uma assimilação da ordem factual aos princípios da intriga narrativa : em um deles – o da narrativa policial – notamos aquilo que poderia justificar uma certa reserva crítica acerca das relações entre a mediação histórica e o recurso aos operadores retóricos da passionalização, que visam a promoção de um regime mais afetado da recepção dos acontecimentos ; neste caso específico, pode-se dizer que o universo de referência da notícia implica numa verdadeira “reescritura” da ordem sucessória dos eventos, valorizando neles o destaque a certos aspectos das ações e dos personagens que os configuram como autênticas traduções dramatizadas da historia factual, deslocando-a efetivamente de uma ordem histórica de sua compreensão mais respeitosa à sua ontologia de origem. 

 

“Ao encenar o evento desta forma, temos a impressão de estarmos revivendo-o em sua atualidade, nos achando in medias res, no momento em que a vítima, depois de ter sido levada para o apartamento do criminoso, ainda se agarra à vida. Por esse artifício, o pathos é acentuado e ato assassino torna-se particularmente sórdido.” (BARONI, 2013: 9)

 

No outro exemplo no qual uma ordem narrativa particularmente intrigante vai operar a discursividade mediática do histórico, nos enocntramos numa ordem acontecimental mais própria aos casos que já examinamos no decorrer deste curso – em especial, no “mito de referência” da transmissão ao vivo do atentado contra o presidente Kennedy (assim como no caso examinado por Jules Gritti, da agonia do Papa João XXIII): é o caso que se exemplifica com transmissões esportivas ao vivo, processos eleitorais e todas as ordens de acontecimentos que envolvem uma temporalidade determinada de sua consumação, mas que permitem às instancias da enunciação um tipo de instalação na sua cronologia que favorece esta discursividade da intriga e da reticência sobre seu destino mais preciso. 

 

A significação propriamente discursiva desta outra maneira de intrigar os fatos históricos se vincula não apenas a uma condicionante da própria relação pragmática entre as condições da produção discursiva da narratividade no presente instantâneo e continuo dos fatos que se desenrolam ao vivo: para além destas condições, a intriga que atualiza estes tipos de ações do universo factual também é ilustrativa de uma condicionante cognitiva e actancial associada à compreensão dos eventos, independentemente de sua fonte – é neste contexto que Baroni destaca inclusive a dimensão ética desta construção em reticência do discurso mediático.

 

“Em outras palavras, o suspense, mesmo quando dependente, até um certo ponto, o discurso mediático não constitui uma ilusão ou um simples artifício, mas pelo contrário, é uma realidade política, assim como bem simplesmente a marca de um engajamento do leitor-cidadão em uma história ainda em aberto. As virtualidades da história que ainda não foram atualizadas podem certamente nos inquietar, gerando um pathos e uma espera da suite da história, ajudando assim a vender jornais, mas, ao mesmo tempo, engajando nossa responsabilidade com um devir ainda em aberto. E no caso de uma eleição, os cidadãos americanos não eram apenas espectadores ou leitores, mas também eleitores, ou seja, os principais protagonistas desta história que não havia ainda sido escrita.” (BARONI, 2013: 11,12)

 

Nestes termos, cumpre que retomemos com atenção alguns aspectos destacados anteriormente, nos quais destacávamos a dimensão propriamente “estética” da organização narrativa de universos factuais: para além do patamar em que é justificado denunciar tais estratégias de passionalização a posteriori dos discursos mediáticos, deve-se compreender a dimensão eventualmente “cidadã” que a apresentação lacunar dos acontecimentos assume para uma sociedade fortemente democrática, por exemplo. Há nisto tudo uma implicação ética e dialógica das produções discursivas. Mas há aí igualmente o espaço para considerarmos a importância de um sentido de “aventura” histórica que se descortina a partir destas considerações. Assunto para outras oportunidades.

 

Referências Bibliográficas :

BARONI, Raphaël. “A Tensão Narrativa Através dos Gêneros: questões éticas e estéticas do suspense”. In: Experiência Estética e Performance: pp. 63,82;

GRITTI, Jules. “Uma Narrativa de Imprensa: os últimos dias de um ‘grande homem’”. In: Análise Estrutural da Narrativa: pp. 170,181;

RICOEUR, Paul. “Os entrecruzamentos da historia e da ficção”. In : Tempo e Narrativa. Vol. 3 : pp. 310,328 ;

 

Leituras Adicionais :

AUSTER, Paul. O Livro das Ilusões (trad. Beth Vieira). São Paulo: Cia das Letras.

GENETTE, Gérard. “Fronteiras da narrativa”. In et al.: Análise Estrutural da Narrativa : pp. 265, 284.


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