Notas da 11a sessão do curso (02/07/2025): Jogos do Texto e o Lugar da Leitura (W.Iser, U.Eco e P.Ricoeur)

Introdução às Teorias da Narrativa (GEC 114)
Aula no 10 (02/07/2025)

Os jogos do texto e o lugar da leitura: a dimensão estética do efeito e da resposta nas teorias da narrativa (P. Ricoeur e W.Iser)

1. Nas sessões precedentes do curso, ao abordarmos a questão dos diferentes tipos de temporalidades que caracterizam o discurso narrativo e a história (factual ou ficcional), notamos que a discordância temporal pauta a relação entre essas duas instâncias (discurso e história), seja sob a grandeza da "ordem" ou da "duração". Nessa relação entre os dois planos que formam nossa compreensão da narratividade, desbrimos então, especialmente com o auxílio de Genette, que essa  discordância não constituiria um desvio do discurso, relativamente ao plano da história contada, já que é através dessa operação de distorção sobre o tempo da história que se exprime a força configurativa de uma poética narrativa.

Nesta idéia de que o tempo da história se restitui a uma matriz “poética” (isto é, essencialmente construída no discurso), e cuja realidade apenas se manifesta sob o signo de uma mediação narrativa (recorrendo assim a tais princípios da distorção ou discordância temporal), há uma ordem outra dessa figuracão lúdica das relações entre temporalidades que precisaria ser trazida ao primeiro plano de nossa exposição: pois, ao estabelecer que o tempo da historia (pessoal ou universal) é da ordem de uma “produção de sentidos”, especialmente manifesta pela arte do narrar e por aquilo que ela configura textualmente, poderemos nos ver enredados numa espécie de metafísica da artisticidade da comunicação narrativa. 

Sob uma tal concepcão, é como se a simples intenção de colocar alguma história na ordem do sentido fosse tudo aquilo que constituísse a matriz da necessidade pela qual se implicam a positividade dos acontecimentos (vividos ou imaginados) e o fato de que esta realidade factual mesma se manifesta sob a forma de uma sucessão de eventos narrados – isto é, postos numa “ordem” temporal própria (aquela da anacronia das prolepses e analepses), implicando relações entre ações, agentes e valores, localização (presumida ou expressa) de vozes discursivas e tudo aquilo que de mais já descrevemos como característico de uma estrutura elementar da narratividade, durante toda a exposição desta segunda unidade do curso.

É a partir destas duas ordens de questões que se implicitam de algum modo – a saber, o de um fundamento poético da realidade histórica e a necessária indistinção que este fundamento aporta entre o que é da ordem da factualidade e o que é construído como parte de ficções - que começamos a expor os problemas que nos colocarão em face de perspectivas teóricas dos estudos da narrativa para as quais tudo isto tem a ver com o papel central que se pode atribuir aos processos da leitura (ou a seus correlatos mais profundos, tais como a “recepção” ou a “compreensão” das narrativas), definido como instância originária do sentido pelo qual a narratividade confere estrutura a nossa apreensão de tudo aquilo que é historico. 

Em suma, compreenderinterpretarler (e até mesmo, em última instância, versentirperceber) constituiem-se como matrizes daquilo que a narrativa normaliza como possíveis quadros estéticos de uma experiência do tempo que se infunde aos acontecimentos, conferindo ao modo como falamos de fatos, acontecimentos e histórias o fundamento ontológico que nos faz dizer que estas são, propriamente falando, “reais”. É assim de uma abordagem estética da compreensão narrativa que desejamos falar aqui, a partir de agora.

2. Um primeiro ponto de nossa interrogação assume por objeto, portanto, o estatuto ontológico que podemos atribuir àquilo que chamamos de “fatos” históricos, com respeito a uma ordem de acontecimentos que se manifesta no corpo de uma ficção narrativa, por outro lado: segundo Ricoeur, por exemplo, o aspecto “factual” da verdade e da referência que se atribuem ao discurso da história (sobretudo quando a pensamos a partir daqueles conteúdos que se universalizam, a seu nome, como sendo a narrativa de uma origem das comunidades, por exemplo) não aporta a esta ordem da narrativa um aspecto de sua veridição que a separe, necessariamente, daquilo que é proprio à compreensão de acontecimentos fundados em atos de imaginação – como é o caso das narrativas ficcionais. 

De saída, aquilo que é restituído do passado dos povos ou dos indivíduos não se constitui estritamente como um “fato” que se observa, mas um “acontecimento” cuja matriz produtiva está na atividade da “rememoração” e não na do “testemunho” imediato dos sentidos: ainda segundo Ricoeur, a história se constitui sobre a pretensão de ser uma reconstrução narrativa do tempo passado, decorrente de um princípio de “representância” – definido como a exigência de um vis-à-vis que caracterizaria a origem mesmo daquilo sobre o que se discursa, a saber, os acontecimentos e sua sequência.

“Dizer que certo acontecimento relatado pelo historiador pode ser observado por testemunhas do passado não resolve nada : o enigma da preteridade é simplesmente deslocado do acontecimento relatado para o testemunho que o relata. O ter-sido é problemático na medida exata em que não é observavel, quer se  trate do ter-sido do acontecimento ou do ter-sido do testemunho. A preteridade de uma observação no passado não é observável, mas sim memorável. É para resolver este enigma que elaboramos a noçao de représentancia (…), significando com isto que as ocnstruçnoes da historia têm a ambição de ser reconstruções que respondem à exigência de um vis-à-vis.” (RICOEUR, 2012 : 267,268).

Não se pode supor que estas exigências que fazem a pretensão de verdade do discurso histórico estejam fundamentalmente separadas da alegada “irrealidade” do discurso ficcional ou imaginário: no corpo de uma narrativa, por outro lado, aquilo que no âmbito da história factual poderia ser observado (ainda que pela mediação do testemunho da memória), agora é uma espécie de ordem das ações que se desenha a partir de um mundo das ações, mas que dele resguarda apenas aquilo que não é puramente ordinário ou insignificante – para a ficção, é necessário que a ordem da sucessão de fatos se manifeste como “problema” ou “desafio” (nos termos de Ricoeur, como “discordância”); além disto, há o fato de que as ações que constituem o universo ficcional implicam numa necessária transformação da vida dos agentes aí envolvidos (seja para a fortuna ou para a desgraça). 

Em um e em outro caso, o que incomoda Ricoeur é o fato de que a história e a fiçao se constituam como dimensões da narratividade (nas suas diferenças específicas), a partir da suposição de que ambas se definam por um tipo de universo de referência de seus respectivos discursos – a realidade como “testemunho memorial”, no caso da história, e como “reconstrução imaginária”, no caso da ficção literária.

"Atingimos aqui o ponto em que descobrir e inventar são indiscerníveis. O ponto, portanto, em que a noção de referência já não funciona, assim como certamente já não funciona a redescrição. O ponto em que, para significar algo como uma referência produtora, no mesmo sentido em que se fala em Kant de uma imaginação produtora, a problemática da refiguração tem que se libertar definitivamente do vocabulário de referência." (RICOEUR, 2012: 268) 

Ora, quando considerarmos mais adiante os “entrecruzamentos entre historia e ficção” (que definem a centralidade do conceito de narrativa, tanto para a imaginação acontecimental quanto para a factualidade propriamente histórica), é para a realidade das estratégias configuradoras do tempo na textualidade narrativa que endereçaremos com mais força a atenção de nossa compreensão sobre as pretensões testemunhais do relato factual da história, assim como a da reconstrução imaginária do mundo das ações na ficção: em suma, é sobre os “jogos com tempo” (na forma das “anacronias” descritas por Genette) que podemos começar a discorrer, no sentido de identificar aquilo que é comum à reconstrução ficcional e à rememoração histórica, naquilo que ambas implicam de um débito com respeito à função das narrativas nes processo. 

3. Em todo este conjunto dos elementos mais gerais das formas narrativas que exploramos até aqui (sucessão das ações, definição dos agentes-valores, estabelecimento das vozes na transparência ou na opacidade das posições de discurso, ordens temporais anacrônicas do discurso e da história) exprime-se algo das teorias da narrativa que implicou uma espécie de “fechamento” da análise destas formas do narrar nas estruturas imanentes das obras ficcionais e históricas: este é particularmente um aspecto resultante do caráter sistemática no oqual tradições do formalismo e do estruturalismo delimitaram, empirica e metodologicamente falando, os objetos preferenciais do estuido sistemático da narratividade.

Umberto Eco já insinua essa problema de um limite das abrodagens textuais das teorias da narrativa, quando avalia a questão da relevância (em seu sentido pragmático) dos "sinais de suspense" de um texto narrativo, como constituindo um fenômeno que necessita ser apreciado à luz dos processos cooperativos que se dão entre a atualização textual das ofrmas narrativas (aquela privilegiada pelo estruturalismo) e os horizontes probabilísticos da compreensão e qualificação das "disjunções de probabilidade" de uma história, que envolvem o emprego dos repertórios presumidos de leitura que o próprio texto instrui em sua efetivação:

"Às vezes, os sinais de suspense são dados pela divisão em capítulos, razão pela qual o final do capítulo coincide com a situação de disjunção. Às vezes, a narraçã procede como numa série em capítulos e introduz um lapso de tempo obrigatório entre a pergunta (nem sempre implícita) e a resposta. Dizemos então que o enredo, e nível de estruturas discursivas, trabalha para preparar as expectativas do Leitor-Modelo, a nível da fábula, e que amiúde as expectativas do leitor são sugerias com a descrição de situações explícitas de expectativa, não raro espasmódicas, da parte da personagem." (ECO, 1986: 95)

Ricoeur formula esse lugar da leitura, na mesma chave em que problematiza criticamente o excessivo imanentismo textual das abordagens estrturalistas das formas literárias, abrindo assim um campo obrigatório de reflexão, pelo qual nos cumpre exercitar uma saída a este encerramento aporético que as teorias da narrativa fazem sobre as estruturas puramente formais do contar histórias: é precisamente nesse ponto que começa a despontar a importância central das considerações sobre a mediação da leitura, no contexto de uma problematização sobre o modo como podemos fixar adequadamente este entrecruzamento necessário do factual e do ficcional.

“Por que essa mediação da leitura ? Pelo fato de que percorremos apenas metade do trajeto da aplicação ao introduzir (…) a noção do mundo do texto, implicada em qualquer experiência temporal fictícia (…). Mas deve-se reconhecer que, isolado da leitura, o mundo do texto permanece uma transcendência na imanência. Seu estatuto ontologico permanece em suspens : em excesso relativamente à estrutura, em expectativa de leitura. É somente na leitura que o dinamismo da configuração termina seu percurso. E é para além da leitura, na ação efetiva, instruída pelas obras consagradas, que a configuração do texto se transmuta em refiguração.” (RICOEUR, 2012: 269,270).

É portanto pela valorização da leitura que se pode avaliar o aspecto pelo qual o sentido que caracteriza a presentificação de um tempo vivido na história contada se assume como propriedade comunicacional da narrativa, como entidade de um sentido apreendido na sua recepção: pois é apenas neste âmbito que podemos justificar, finalmente, que a estruturação do sentido que caracteriza a ordem temporal na qual a narrativa apresenta os fatos e sua sucessão experimentam a eficácia que lhe é própria; esta última, por sua vez, nada deve a supostas imanências poéticas (da ficção) ou empíticas (da história), mas aos modos como se efetua em regimes lúdicos de leitura, com forte carga hedonística associada à sua compreensão semântica - já que estamos falando do prazer que frequentemente acompanha nossa experiência de um enredo de acontecimentos.

Por esta última razão do prazer da leitura é que se pode finalmente valorizar no âmbito da recepção uma dimensão “estética” desta experiência do tempo que é própria tanto à ficção quanto ao relato histórico - pois é pela mobilização das capacidades e competências para ressentirmos sensória e passionalmente a evolução do tempo narrado que podemos afirmar que a construção poética do discurso narrativo se enraíza em sua própria justificação, através do efeito que se estrutura por essa relação do texto com a leitura. Se as estratégias poéticas se perspectivam para o sucesso que configura a experiência do tempo narrativo na história e na ficção, isto é devido ao fato de que é na instância do leitor (ou de um tipo especial de leitor concebido pela instância da obra) que pode-se dizer que a narrativa “existe”, de uma maneira mais ou menos própria.

"Entrar em estado de expectativas significa fazer previsões. O Leitor-Modelo é chamado a colaborar no desenvolvimento da fábula, antecipando-lhe os dados sucessivos. A antecipação do leitor constitui uma porção de fábula que deveria corresponder àquela que ele está para ler. Uma vez que a tenha lido, dar-se-á conta se o texto confirmou ou não essa previsão." (ECO, 1986: 95)

Nos termos em que Ricoeur estabelece esta questão (explorado longamente na segunda parte de seu texto sobre as relações entre texto e leitor), procura-se uma fuga ao suposto teórico – presente em certas tradições dos estudos lietrários – de que a leitura seria  resultante de operações retóricas de validação do discurso narrativo, em face de sua leitura: em tais perspectivas, é a figura construída do autor que conquista ou estipula o plano no qual a compreensão receptiva poder-se-ia erigir: são tais admissões que levam Ricouer a recapitular uma estética da recepção como saída para este problema.

“Numa pespectiva puramente retórica, o leitor é, no limite, simultaneamente presa e vítima da estratégia fomentada pelo autor implicado, e isso tanto mais quanto mais dissimulada for essa estratégia. Precisa-se de uma outra teoria da leitura que ponha a ênfase na resposta do leitor – sua resposta aos estratagemas do autor implicado. O novo componente com que a poética se enriquece remete então mais a uma ‘estética’ do que a uma ‘retórica’, se concordarmos em devolver ao termo estética a amplitude de sentido que lhe confere a aisthésis grega, e lhe dar por tema a exploração das múltiplas maneiras como uma obra, ao agir sobre o leitor, o afeta.” (RICOEUR, 2012 : 285)

4. Ora, este aspecto central da leitura pode ser reclamado, sob dois aspectos principais: de um lado, pode-se admitir que a leitura é parte do processo histórico no qual a própria gênese do discurso narrativo está colhida, já que esta leitura é um processo necessariamente interacional – portanto, fundando em aspectos necessariamente partilhados de toda ordem de significações que possam se inscrever ao texto, tanto no âmbito das produções discursivas quanto naquele de sua própria recepção, interpretação e valorização, no decurso dos diferentes períodos e sociedades. Em várias linhagens de uma teoria estética da recepção, é esta demarcação mais histórica e social da experiência que delimita a definicão dos papéis configuradores da leitura. 

Em tais perspectivas (ilustrada por Ricoeur através dos trabalhos de Hans Robert Jauss), contudo, o que está em discussão é menos aquilo que invoca a leitura em contextos de compreensão da narrativa, e mais o problema da consagração da literatura enquanto forma cultural. 

De nosso ponto de vista, entretanto, preferimos valorizar aqui a dimensão na qual esta recepção é instaurada pela dinâmica dos “jogos” com os quais o texto narrativo (compreendido como conjunto de estratégias semânticas e pragmáticas) convoca seu intérprete, nas condições de um agente dos lances de interação com o texto, propostos pelo proprio texto: é nesta situação que veremos trabalhar, com muita força, determinadas linhagens das teorias estéticas contemporâneas, que se aproximam consideravelmente de uma certa “pragmática” da cooperação interpretativa, como aquela que caracteriza as abordagens semióticas da recepção em Umberto Eco, por exemplo (expressas em seus textos sobre a leitura de ficções literárias, e no papel comprementar exercido pela fixação de universos temáticos e princípios de coerência interna dos textos narrativos).

"À primeira vista, o passeio inferencial parece um artifício para textos a jogar com base em topoi consumados; e é sem dúvida por passeio inferencial, que num filme de bangue-bangue - se o xerife está apoiado no balcão do bar do saloon e o bandido lhe aparece pelas costas - prevemos que o xerife o perceba no espelho atrás das garrafas de bebida e se vire, de repente, sacando o revolver e o mate." (ECO, 1986: 99) 

Na matriz destas abordagens mais “estéticas” das teorias da literatura, nota-se uma tese que valoriza o sentido com o qual as estruturas narrativas que constituem as obras ou os textos se manifesta por uma necessária “incompletude” – algo que talvez se reforce pelo aspecto da heterogeneidade de sua temporalidade, com respeito àquela que caracteriza a ordem histórica de sua origem ou de sua referência. 

Neste sentido, há um aspecto da representação dos acontecimentos na narrativa que implica uma relativa vagueza do modo como a temporalidade originária dos acontecimentos é como que atualizada ou presentificada na ordem narrativa: este aspecto “anacrônico” da relação entre o tempo da história e o tempo da narração institui lugares de uma relativa indeterminação pela qual se destaca o espaço que é próprio à atividade do leitor ou do espectador, que é frequentemente invocado a figurar para si, pela atividade em que se engaja, a sucessão dos acontecimentos e o caráter dos agentes aí empenhados pelo texto.

Sherlock, 1a temporada, último episódio (Mark Gatiss, Steven Moffat) - cena final

5. Em um segundo aspecto importante desta incompletude constitutiva da narrativa, Ricoeur destaca para nossa atenção uma dimensão da sucessão das ações que já era manifesta, no modo como a análise estrutural da narrativa em Barthes destava a economia “proairética” da representação das ações: se naquele momento, isto parecia implicar a constituição das sequências narrativas, em seu aspecto internamente problemático (sem qualquer consideração necessária sobre o modo como o leitor pode atualizar uma escolha de destinos ainda não presentificada no plano diegético), uma teoria da recepção parece transpor os limites estritos desta estrutura, para valorizar a interação mesma que o texto narrativo instaura com sua recepção possível. 

Assim sendo, esta manifestação problemática das ações (o aspecto potencialmente disjuntivo da apresentação de situações particularmente dramáticas de uma história) institui um outro tipo de relação com a leitura, pelo qual a apresentação de um acontecimento ou de uma sequência dos mesmos se dá sempre a partir de uma economia de reticências e de antecipações possíveis da resolução de uma situação dada, aspecto este que define o tipo de relação que o texto institui para o leitor, na forma de uma interrogação sobre a resolução das ações, assim como as diversas temporalidades em que isto se resolve.

“Ora, esse jogo de retenções e protensões só funciona no texto se for assumido pelo leitor, que o acolhe no jogo de suas próprias expectativas. Mas, diferentemente do objeto percepcionado, o objeto literário não vem ‘preencher’ intuitivamente essas expectativas; pode tão somente modificá-las. Esse processo movente de modificações de expectativas constitui a concretização imagética evocada acima. Consiste em viajar ao longo do texto, em deixar ‘afundar’ na memória, abreviando-as, todas as modificações efetuadas, e em se abrir para novas expectativas, tendo em vista novas modificações. Só este processo faz do texto uma obra. A obra, poder-se-ia dizer, resulta da interação entre o texto e o leitor.” (RICOEUR, 2012 : 287).

6. A idéia mesma de que a experiência da narrativa implica uma certa métafora do caráter mais jogado destas relações propostas pelo texto (literário ou imagético) com o seu leitor, já traz consigo a suposição de que o sistema textual (e também de significações) que caracteriza a narrativa se concebe como necessariamente aberto aos processos – potencialmente indetermináveis – pelos quais o horizonte de expectativas da leitura é como que aproveitado ou oportunizado pelas relações de sentido que as narrativas buscam colocar em cena. 

Nestes termos, a relação lúdica que examinamos anteriormente entre as duas temporalidades da história e da narrativa (o tempo narrado e o tempo do narrar) não pode ser definida estritamente como uma “representação” da cronologia histórica; o tempo pelo qual a narrativa atualiza uma dimensão possivelmente histórica dos acontecimentos (seja ela factual ou imaginária) não pode ser retida pela noção de que as narrativas “representam” este tempo, do mesmo modo que dizemos que um quadro representa uma paisagem ou um rosto; nestes termos, o tempo histórico (a temporalidade própria às coisas sobre as quais um evento é narrado) não é uma condição objetiva e anterior à qual a narrativa deve se restituir como uma espécie de modelo ou objeto, do ponto de vista de sua atualização.

Não sendo então da ordem de uma representação, esta relação é pensada sob o paradigma de um processo dinâmico e permanentemente contínuo, pelo qual sua referência é menos pensada em seus valores de verdade do que pelo modo como promovem as capacidades da recepção em ativá-lo, a cada ponto da interação feita através da mediação da leitura. Ao abordar estas questões, Wolfgang Iser insiste, uma vez mais, sobre a importância da imagem ou metáfora do “jogo” processual – contínuo e de temporalidade indeterminável – pelo qual esta maneira de apresentação dos eventos narrados evoca a instância central do leitor. 

Se o sentido do texto não procede da sua presumida dimensão “mimética”, é a “performatividade” na qual as ações se manifestam como parte de uma narrativa (pela qual ela apresenta um problema, faz uma pergunta, propõe um testemunho, entre outras coisas) que constitui a conexão pela qual sua apresentação textual evoca um certo modo de sentir no texto a sua conexão com uma temporalidade que é constitutiva de nossa experiência dos fatos, na ordem histórica em que eles nos parecem apropriados.

“Os autores jogam com os leitores e o texto é o campo do jogo. O proprio texto é o resultado de um ato intencional pelo qual o autor se refere a intervem em um mundo existente, mas, conquanto o ato seja intencional, visa a algo que ainda não é acessível à consciência (…). Ora como o texto é ficcional, automaticamente invoca a convenção de um contrato entre autor e leitor, indicador de que o mundo textual há de ser concebido, não como realidade, mas como se fosse realidade. Assim, o que quer que seja repetido no texto não visa a denotar o mundo, mas apenas um mundo encenado.” (ISER, 2001 : 107) 

Este processo da interação entre o leitor e o texto se define por uma dialética fundamental, decorrente do modo de apresentação da sucessão, na economia das “protensões” e “retenções” do texto: apresentado o mundo para uma leitura que visa combinar a ordem dos fatos narrados a um mundo das ações localizado na experiência, é próprio do texto narrativo exprimir sua temporalidade como aspecto não imediatamente legível da realidade, portanto propício a uma problematização que se dará na própria leitura. 

Ainda assim, a experiência da leitura, ao menos na perspectiva do mais individual de sua ocorrência, sempre aponta para o inverso deste “excesso de sentido”, pelo qual a obra se oferece a uma certa abertura de suas apropriações: neste contexto aparentemente inverso ao primeiro, a interação da leitura se consuma como a concretização da “ilusão” proposta pela obra de integrar em sua prórpia totalidade a temporalidade de seu apresentar-se em narração e aquela do mudno das acões no qual se inscreve a atividade do proprio leitor. Ainda que reduzida à estrita individualidade existencial desta experiência, é este aspecto da resolução concreta do texto na leitura que manifesta a narrativa, em sua realização mais própria. 

Este princípio pelo qual o jogo de texto se constitui necessariamente para as performances da leitura e da atualização do mundo das ações no tecido das narrações implica, de fato uma concepcão pela qual o texto narrativo se constitui essencialmente na diferença que se pode interpor entre a estrutura “poética” de sua origem intencional (o corpo narrativo é originado em um “modo de fazer mundos”) e toda a ordem das realidades às quais se reporta (a factualidade dos eventos que a constituem, seja do ponto de vista temático, seja do modo como a expressão narrativa a apresenta, nos regimes temporais que lhe são próprias). 

Ao performarmos um mundo narrado pela leitura, não podemos supor que as formas narrativas o representem, mas é fato que experimentamos esta interação com o textona expectativa de uma tal restituição, o que explica o caráter constitutivamente “ilusório” da experiência narrativa, dada a perspectiva de sua recepção ou leitura.

Referências Bibliográficas:
ISER, Wolfgang. “O jogo do texto”. In: A Literatura e seu Leitor.
RICOEUR, Paul. “O mundo do texto e o mundo do leitor”. In : Tempo e Narrativa. vol. 3

Leituras Recomendadas:
ECO, Umberto. "Previsões e passeios inferenciais". In: Lector in Fabula;
RICOEUR, Paul. “Jogos com o tempo”. In : Tempo e Narrativa. vol. 2.

Próximas Leituras:
BARONI, Raphaël. "A Tensão Narrativa Através do Gêneros: questões éticas e estéticas do suspense". In: Experiência Estética e Performance;
GRITTI, Jules. "Uma Narrativa de Imprensa: os últimos dias de um grande homem". In: Análise Estrutural da Narrativa;   
RICOEUR, Paul. "Entrecruzamentos da história e da ficção". In: Tempo e Narativa, vol. 3  
       

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