Notas da aula de hoje (09/04): Três fontes dos saberes sobre narrativas
Introdução às Teorias da Narrativa (GEC 114)
Aula no 1 (09/04/2025)
Mito, História, Poiésis: três fontes dos saberes sobre narrativas
1. Já examinamos em nossa discussão introdutória do curso que o percurso das ideias que informam as teorias da narrativa nos pede para evitarmos certas confusões conceituais, naquilo que respeita os objetos desses saberes: há decerto fenômenos assemelhados àquilo sobre o que se debruçam os narratólogos e aquilo de que falam, por exemplo, certas ramificações da historiografia, ao pensarem sobre o modo de se organizar discursivamente episódios e fatos de relatos sobre sociedades, culturas e civilizações.
Se desejarmos nos manter num nível de apreensão próprio a nossa própria experiência cultural, falemos então das pretensões de autoridade do jornalismo, enquanto prática social e discurso organizador de atualidades históricas, para pensarmos a importância de se considerar a grandeza propriamente narrativa dessas práticas de retenção do passado remoto ou imediato – ou mesmo das atualidades mais relativamente insignificantes, mas que, ainda assim, chegam a nosso conhecimento de alguma maneira. Nesse ponto inicial da exposição, contudo, nossa atenção se fixará nos limites entre história e narrativa, quando oscilamos indiscriminadamente entre tais domínios conceituais, conforme sejam pensados como contíguos – que será assunto de um ponto mais avançado de nossa exposição.
Outra fonte de um saber sobre narrativas se enraíza no problema do mito nas teorias antropológicas - relativamente à qual uma igual ponderação deve ser cultivada, no que respeita implicações ou semelhanças com questões próprias ao trabalho do etnólogo, de um lado, e do crítico/teórico da literatura, de outro: a força explicativa da Antropologia Estrutural sobre aspectos da definição de uma “natureza” intrinsecamente humana – manifesta em dimensões tais como a da transmissão do parentesco ou dos modos de justificação sobre o ordenamento de coletividades – teve muito a ver com elementos que definem a realidade do mito, enquanto construção discursiva, no modo como certas correntes teóricas dessa disciplina atribuíram a um sedimento linguístico das práticas sociais o centro de sua atenção.
Nestes termos, a corrente das teorias antropológicas que se consolidou sob o título do “Estruturalismo”, comandada pelos trabalhos fundamentais do etnólogo Claude Levi-Strauss, assumiu uma posição de destaque no contexto das ciências sociais do último século, precisamente por ter sabido fazer um uso muito eficaz e particular de certas heurísticas das modernas ciências da linguagem (em especial, nos estudos da fonologia, mas também aqueles dedicados à discursividade narrativa), e que permitiram o exame de determinados aspectos da transmissão das linhagens familiares, a partir de bases mais abstratas do que aquelas derivadas da biologia ou da particularidade histórica das comunidades – assim como aquele da estrutura narrativa dos mitos de sociedades tribais, sedimentadas no projeto monumental dos quatro volumes das assim chamadas Mitológicas – que reúem os quatro livros de Levi-Stauss dedicados ao assunto (O Cru e o Cozido, de1964; Do Mel às Cinzas, de1966, A Origem das Maneiras à Mesa, de 1968) e O Homem Nu, de1971).
A marca originária mais característica das teorias da narrativa decorre, contudo, da fixação de seu objeto, antes de mais nada, como realidade poética, isto é: como elaboração discursiva, exercitada por uma disciplina técnica ou artística e dirigida a um horizonte de efeitos bem precisos junto à sua audiência. Para além da implicação entre tal poiésis narrativa ou dramática (já que, em alguns casos, a atualização desse discurso implica os recursos da encenação teatral ou fílmica para se realizarem) e sua sedimentação como estatuto de “artisticidade” de sua composição, é este compromisso entre engenhos textuais e efeitos específicos de seu emprego que fornecem o solo mais importante de uma consideração sobre a narratividade, especialmente no modo como se consolidou na crítica e nas teorias literárias dos dois últimos séculos.
Seja sob o signo das fontes clássicas desse discurso, na Antiguidade de Aristóteles até Horácio, ou nas suas encarnações modernas e contemporâneas (das quais aquelas de maior efeito sobre nós derivem, direta ou indiretamente de um ethosestruturalista e de seus antecedentes no Formalismo russo), tal implicação entre narrativa e poiésis constitua talvez um a priori inevitável dos modos de se acessar o núcleo mais significativo da narratividade: tal prevalência da poética deve nos guiar nessa introdução às teorias da narrativa, não sem implicar certas depurações que tal herança clássica aportou a esses saberes, particularmente em duas de suas dimensões principais: primeiramente, aquela que vincula o conceito de “narrativa” ao de “literatura” e aquelas que implicam o fundamento “poético” da narratividade a algum estatuto valorativo da “artisticidade” – com seu corolário de identificação da “narrativa” à “ficção”, literária.
2. Examinemos cada uma dessas fontes, começando pelo caso da implicação entre “narrativa” e “mito”, como abordada pelas perspectivas antropológicas: ao examinar o fenômeno dos mitos em sociedades ditas “primitivas”, Levi-Strauss Levi-Strauss propõe uma correlação entre a existência social e uma ordem abstrata de princípios de sua justificação, e do lugar do mito nesse contexto preciso. Em primeiro lugar, há uma relação entre “estruturas semânticas” do mito e “estruturas de pensamento” que lhe fornecem o molde de funcionamento (portanto, entre modos de pensar e modos de significar) - sendo nesse aspecto precisamente que o mito emerge para a Antropologia Estrutural como fonte para esclarecer as maneiras pelas quais se concebe a vigência dos valores e princípios inconscientes que tecem a força de um ordenamento coletivo, em seus vários aspectos fundamentais (jurídico, penal, de crenças, de relação com a natureza, de ordens de saberes e de suas formas de transmissão, dentre outros).
Em uma entrevista de 1984 para o programa de televisão francesa Apostrophes, de Bernard Pivot, Levi-Strauss discorre sobre esses aspectos do mito que revelam tal enlace entre essas histórias e aquilo que identificaremos nas sociedades modernas enquanto partição das ordens de saberes reconhecíveis: em suma, mitos são historias contadas por um certa comunidade, constituídas na necessária ausência de um autor preciso (muito embora algumas delas possam tê-lo), justamente por se constituírem como patrimônio comum desses grupos humanos – sendo, por isso mesmo, objetos de uma transmissão, ritualizada pela repetição sucessiva de sua narração (transmissão que jamais se dá sem que o próprio mito se modifique em certos aspectos); por seu intermédio, compreende-se o modo como tais sociedades se constituem, em vários de seus aspectos normativos e definidores - desde as relações entre seus membros e o mundo exterior, até as relações com outras comunidades próximas e distantes e finalmente a posição dos homens em relação à natureza e ao universo.
E como é que, na prática, se manifesta este discurso do mito? Ademais, como é que podemos passar da condição em que ele exprime uma estrutura conceitual e invariante do espírito humano, para enfim chegarmos à sua “armadura” propriamente narrativa? E, finalmente, como é que caracterizamos esta estrutura narrativa do mito, na sua correlação com a compreensão mais comum sobre a arte de contar histórias? Estas são questões que nos conduzem ao modo como o exame do mito pela Antropologia Estrutural será apropriado, não apenas pela nascente teoria semiótica dos anos 60 do último século, mas sobretudo no aspecto em que permite estipular uma espécie de teoria poética da narratividade, mais conectada com os estudos literários – e, mais tarde, com sua expansão para os quadros da comunicação, em geral. Podemos dizer que essas considerações etnológicas sobre mito exprimem três dimensões importantes para condicionar e situar as tarefas de uma teoria da narrativa, a saber: a de uma “sintaxe das ações”, a de uma tópica de “virada de destinos” e a da necessária “actorialização” dos episódios míticos. Vejamos brevemente como cada um desses pontos será posteriormente desenvolvido pelas teorias da narrativa:
1) No que respeita o modelo semiótico, o aspecto mais importante da narrativa mítica é aquele que implica uma unidade discursiva de seus enunciados, a partir de um modelo hierárquico da sucessão episódica: a linearidade que caracteriza a ordenação sequencial da representação de acontecimentos do mito exprime um principio segundo o qual cada momento da historia depende daquilo que o antecede - aspecto que informa uma organização sintática dos elementos do mito; esta é a razão pela qual sua estrutura linear se define por um caráter “subordinado” da sucessão, mais do que por sua justaposição - algo que confere à sua sintaxe o aspecto mais próprio à “hipotaxe”. No modelo estrutural de análise da narrativa, Roland Barthes vai cifrar esta sintaxe das ações em termos derivados da morfologia de Vladimir Propp e mais centrado na significação estrutural que se pode conferir ao conceito aristotélico de “intriga”, como veremos em capítulos mais à frente.
2) A propósito, este regime ordenado de significação temporal do mito se caracteriza, por sua vez, como um sistema de “viradas” dos andamentos da história: isto confere, do ponto de vista de sua sucessão discursiva, a significação mais patentemente dramática que manifesta a narrativa mítica (ainda que seja nela menos patente do que nas formas consagradas pelo conto, pela novela ou pelo teatro, nas matrizes culturais celebradas pelos estudos literários). No caso dos mitos estudados por Levi-Strauss, este sentido de inversão dos conteúdos se define pelo caráter mesmo de certas ações – permitindo resumir a função do “contrato” que dispara uma ação ou situação narrativa no mito; a inversão tópica de um contrato no mito é necessária para promover a sucessão episódica, como aspecto de motivação da história. O assunto narrativo do mito se encarna assim em um drama (ou ação representada), que é significada pela inversão de um conteúdo estruturado como “contrato”, em suas várias dimensões de manifestação (regra social, promessa, compromisso, costume, rotina, dentre outros).
3) Por fim, a ocorrência de um contrato no mito - assim como a inversão definida por sua quebra - não se constituem eficazmente sem que sua estrutura narrativa apresente estas situações como sendo necessariamente “actorializadas”, ou seja: naquela função mais própria aos personagens, mas também nos modos de apresentação de outras entidades da história mítica (como as do mundo natural, por exemplo): a realidade na qual o mito manifesta uma estrutura conceitual que ordena narrativamente sua mensagem deverá implicar, portanto, esta espécie de corporificação das inversões tópicas e das subordinações sintáticas de cada episódio, a partir da apresentação dos “actantes”, dotados de aparência reconhecível e de atributos valorativos que são significados pelas condutas que desempenham. Estes pontos serão igualmente desenvolvidos mais à frente, quando formos abordar as “estruturas actanciais” do discurso narrativo.
É na base oferecida por estes três elementos de sua atualização discursiva (a sintaxe das ações, as ordens tópicas do discurso narrativo e os sistemas de actorialização dos episódios) que podemos finalmente dizer que se constitui para o estudo do mito a necessidade de construção de uma “armadura” narrativa de seu discurso. Quando chegamos a este ponto, imaginamos aquilo que sobrevive dessa armadura, quando dirigimos todo esse aparato de explanação para as formas da transmissão e compreensão da narratividade que caracterizam nossa própria civilização – sendo nosso primeiro ponto de parada aquele que caracteriza os modos como esta mesma escola do Estruturalismo cifrou a tradição da crítica e das teorias literárias antecedentes (que firmaram sobre o conceito de “função” a base de uma teoria da narrativa literária e até mesmo de uma poética estrutural no Formalismo russo), sendo este nosso próximo ponto de exploração, a saber, aquele que define a poiésis como matriz de diferenciação da narratividade enquanto objeto de estudo, a seguir.
3. Por outro lado, ao nos situarmos no contexto dos estudos literários e da função que exerceram no florescimento das teorias da narrativa, vemos que tais aspectos acima discriminados da concepção antropológica do mito ganham uma nuance que nos permite enxergar os fundamentos dessas teorias com mais nitidez: uma tal matiz “poética” dos saberes sobre a narrativa é historicamente debitável das estruturas da construção textual, e do modo como sua análise foi separada de quaisquer outros aspectos significativos das formas narrativas. Isto implica a manutenção das conjunções entre problemas centrais de escolas de pensamento como as do Formalismo russo do início do último século e do Estruturalismo que reinou nas humanidades, a partir da última metade do mesmo: diferentemente daquilo que se deu com a transposição dos estudos etnológicos do mito para os esquemas narrativos de sua transmissão na semiótica textual, o que se passa com as abordagens poéticas da narrativa se explica pela especificidade do fenômeno literário - e do quanto ela depende de uma precisa caracterização dos engenhos textuais que diferenciam a literatura de outros domínios da produção discursiva.
Esse topos da qualidade própria das formas literárias (aquilo que o linguista russo Roman Jakobson designou alhures como “literariedade”) animou autores articulados pelos princípios do Formalismo a elaborar quadros conceituais através dos quais o exame de estruturas narrativas se sobressaísse como sinal característico dessa distinção da literatura, enquanto objeto de interrogação. No caso de Vladimir Propp, por exemplo, este é o tema das “funções” que atravessam a narratividade dos contos populares russos – e que permite encontrar na textualidade literária as invariâncias temáticas dessas fábulas, não obstante as possíveis particularidades autorais ou estilísticas de cada uma dessas composições. Por outro lado, conceitos como o do “tema” narrativo, em Boris Tomachevski, inspirarão mais tarde os semiólogos da segunda metade do século XX (dentre os quais, Umberto Eco) a pensar os processos cooperativos entre texto e leitura, como itens que se depreendem da atenção aos engenhos textuais da narratividade literária. Todos esses são aspectos que estarão no centro de nossa atenção, já a partir das próximas sessões.
Mais adiante, em autores como Gérard Genette e Roland Barthes, encontraremos amostragens significativas dessa grandeza na qual o problema da narrativa nos coloca em face de certas construções (que poderíamos designar como “técnicas” discursivas) que podem ser delineadas, em função de categorias tais como aquelas que o Formalismo russo nos legou (como a da separação entre “história” e “discurso”, que reencarna a clivagem entre “suyzhet” e “fabula”, proposta por Tomachevski), ou aquelas ainda mais remotas, como as de “mimese” e “diegese” (derivadas do embate clássico da Antiguidade grega entre Platão e Aristóteles). Em cada uma dessas matrizes de recuo, uma poética estruturalista identifica como tarefa de uma teoria da narrativa o estabelecimento dessas balizas mais abstratas da criação literária ou extraliterária - pela qual podemos delimitar fenômenos tais como o da sintaxe funcional da narrativa, a igual funcionalidade do papel dos agentes, assim como da própria orientação perspectiva da narração, na forma de um sistema de focalizações.
Os temas conjurados por uma matriz poética das teorias da narrativa nos situam talvez naquela baliza que torna mais reconhecível o perfil desses saberes, no decorrer dos últimos dois séculos, pelo menos: ainda que ao preço do pedágio excessivo da restrição de suas categorias ao exame dos fenômenos literários, aquilo que se compreende como conjugado por essas teorias deriva fundamentalmente do trabalho que essas tradições de pensamento do século XX consolidaram como atenção aos engenhos textuais da narratividade – e que, mais tarde, por graça de uma certa mediação dos nascentes saberes semiológicos, nos anos 60 do último século, acabou por se prolongar para âmbitos culturais que excediam essa fronteira arbitrária da “literariedade” mais própria às formas do conto e da novela, assim como do drama narrativo encenado das formas teatrais. Veremos em capítulos subsequentes que é precisamente esta ampliação do escopo de uma teoria da narrativa para universos extraliterários que introduz a relevância desses temas para os universos culturais da comunicação, nosso campo de interesses.
4. Por fim, chegamos a uma terceira fonte das teorias da narrativa, aquela que nos permite situar a organização desse discurso como elemento que caracteriza o modo como a história se constrói, em sua significação mais efetiva para nossa compreensão. Em suma, trata-se de pensar os aspectos em que a estrutura mesma do narrar eventos em série implica uma espécie de inevitabilidade do histórico – como traço de nossa consciência humana de como o tempo se estrutura narrativamente. Como estamos reportando a significação histórica a seu aspecto de horizonte humano de compreensão (que é modo como o filósofo Paul Ricoeur cifra a relação entre tempo e narrativa), podemos designar esta última perspectiva dos estudos da narrativa, por razões diversas e explicáveis mais adiante, como sendo da ordem de uma “hermenêutica”, fundada na compreensão da narrativa como condição de nossa relação com o mundo – e não apenas, como na perspectiva poética, relativa a “modos de fazer”.
Como vimos nas abordagens poéticas da narratividade, os estudos literários se contentam em delimitar fronteiras intransponíveis entre a configuração linear do discurso narrativo, deixando em suspensão aquilo que concerne aos conteúdos tópicos da história: trata-se de uma predileção pela “armadura” em relação ao “universo” do discurso narrativo, se pensarmos nas distinções que Greimas reconhece nas abordagens antropológicas do mito, em Levi-Strauss. Esta sobrevalorização das instâncias discursivas da narratividade deixa pouco espaço para os horizontes históricos do narrar, aspecto que somente poderia ser delineado se passarmos a lidar com as dimensões temporais da construção narrativa, relativamente aos conteúdos que ela apresenta em seu discurso. Assim sendo, uma primeira instância na qual narrativa e história podem se conectar diz respeito ao modo como elas partilham uma determinada estrutura da organização do tempo, como traço de nossa compreensão sobre aquilo que acontece, seja no plano da poesia dramática e ficcional ou do relato factual.
O que falta a um tal modo de dimensionar a historicidade subjacente do texto narrativo implica uma relativa saída dessa imanência textual, especialmente naquilo que concerne sua armadura sintática – consagrada não apenas pelas teorias das “funções”, no Formalismo, mas também pelas noções de “sintaxe” do discurso narrativo, nas teorias estruturalistas do mito: no lugar delas, uma dimensão de historicidade subjacente ao narrar deve implicar aspectos de uma fenomenologia do tempo expressa pelo discurso narrativo – e que contamina não apenas o relato factual ou histórico, mas também a fabulação ficcional: a organização das ações e dos acontecimentos que definem uma narrativa modulam essencialmente o tempo destas ocorrências e de sua sucessão, relativamente a sua manifestação, numa tal condição em que o histórico não se define apenas como um aspecto facultativo, mas como estrutura mesma da discursividade narrativa.
Este é, pois, o ponto que necessitamos explorar, daqui para a frente: a relação constitutiva da narrativa com a história, implicada numa certa dimensão que a consciência temporal dos acontecimentos assume, em correlação com as estruturas de espacialização tópica das narrativas. Em primeiro lugar, precisamos estabelecer a diferença necessária entre este sentido “histórico” do narrar com respeito àquele de uma estrita correspondência factual: com respeito àquilo que verdadeiramente nos interessa, é a propriedade temporal de uma remissão da narratividade à historicidade que se coloca como aspecto desse horizonte da narratividade; em primeiro lugar, a constituição de um acontecimento se define como “histórica”, pelo modo como vemos a ordem de seus eventos ficar submetida a uma cronologia, por exemplo.
Por fim, avaliaremos mais adiante as condições nas quais a historicidade que atravessa as narrativas não diz respeito apenas ou tanto a gêneros ou modos discursivos (tais como o factual e o ficcional), mas sobretudo constituindo um espaço de “entrecruzamentos” entre essas modalidades - sobre os quais nos fala Paul Ricoeur, por exemplo: para além das condições em que o discurso factual é constrito pelas regras de seu gênero, e assim forçado a explicitar as condições de sua mediação narrada dos eventos (como examinamos frequentemente, no uso das funções fáticas do discurso jornalístico), o aspecto mais decisivo da relação entre estruturas textuais da narrativa e modalidades históricas de sua compreensão é precisamente aquela que dificulta estipular suas fronteiras respectivas – por exemplo, sob a alegação de que uma é irredutivelmente própria à ficção e a outra ao relato histórico.
É esta ordem de problemas que toda uma tradição da epistemologia da história (não casualmente derivada do trabalho de críticos e estudiosos da literatura) aporta a esta especificidade histórica da narrativa: estas modalidades nos apresentam a história factual, muitas vezes a partir de recursos de apagamento das marcas de enunciação, com os eventos se desenvolvendo como se fossem dados a uma consciência que os observa sem qualquer mediação; ora, de modo geral, ao menos em certo cânone literário, esta é uma modalidade de exposição narrativa mais própria à ficção que ao relato factual – de tal modo que precisamos nos perguntar como é que o caráter existencialmente histórico da estrutura narrativa pode se manifestar neste outro tipo de mediação mais elusiva que constitui nossa relação com o tempo e a sucessão de uma ocorrência significativa.
5. Recapitulemos, na maior brevidade possível, aquilo que se tenta firmar aqui, antes de começarmos nosso percurso pelos elementos que compõem o discurso narrativo:
1) na perspectiva de sua tomada em causa nos estudos da Comunicação, os saberes sobre narrativas se remetem a pelo menos três ordens fundamentais nas quais seu problema se coloca: do lado dos estudos antropológicos do mito (sedimentados pela Antropologia Estrutural, mas também cifrados na chave de certas teorias semióticas), a narrativa se constitui como um tipo de discurso que exprime não apenas conteúdos específicos (ligados a diversas balizas do sentido e do valor), mas sobretudo uma “armadura” lógica e discursiva, particularmente identificada com a noção de uma sintaxe própria aos modos de transmissão que a caracterizam;
2) Quando transpomos estas questões para o âmbito dos estudos literários e de sua possível expansão para os domínios da comunicação e da mediatização (que consagraram muito daquilo que uma nascente semiologia no último terço do século passado estipulou como um programa de pesquisa informado pelo método estrutural), descobrimos que tais engenhos textuais exprimem uma continuidade admirável com muito daquilo que se desenvolveu na Antiguidade clássica (especialmente com Aristóteles), enquanto concepção poética da narratividade. Em boa parte das próximas sessões, este ponto será detalhado em maior extensão – e é aqui que a dimensão de “armadura” lógica que informava a noção do mito como narrativa, se converte aqui em um discurso sobre a sintaxe narrativa enquanto parte de um sistema de “funções” desse discurso;
3) Finalmente, não podemos desconsiderar os fenômenos, especialmente próprios de uma literatura realista do século XIX, mas que também orientam o relato factual nas práticas discursivas contemporâneas, e que consiste em identificar no sedimento mesmo das construções narrativas um conjunto de fenômenos associados àquilo que podemos designar como nossa “compreensibilidade” histórica das fábulas: quando chegarmos a este terceiro eixo dos saberes sobre narrativas, veremos que aquela ordem funcionalizada da sintaxe narrativa está em perfeita e complementar correlação com certos aspectos da temporalidade histórica, através dos quais atribuímos não apenas a validade factual de discursos narrativos, mas fundamentalmente o sentido minimamente te compreensível dessas expressões, enquanto representações de acontecimentos.
Próximas Leituras:
BARTHES, Roland. “Introdução à análise estrutural da narrativa”. In et al.: Análise Estrutural da Narrativa: pp. 19,62;
GENETTE, Gérard. “Fronteiras da narrativa” . In et al.: Análise Estrutural da Narrativa: pp. 265, 284.
Como é possível estabelecer uma definição teórica de “narrativa” que seja suficientemente precisa para orientar a análise crítica?
ResponderExcluirAo invés de responder com um smash, jogo a bola de volta a tua qudra com outra questão: até que ponto uma definição teórica de narrativa necessita ser "suficientemente precisa" para orientar a análise crítica?
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