Notas da 3a sessão do curso (30/04): mundos, temas e topic do discurso narrativo (Eco, Tomachevsky, Volli)
Aula no 3 (30/04/2025)
O “Quê” das Histórias: Temas e Mundos Narrativos (U.Eco/U.Volli/B.Tomachevski)
1. Na sessão anterior, introduzimos algumas questões de fundo de uma teoria das formas narrativas, partindo de seus limites, por assim dizer, “internos” da definição desse objeto (já que estamos falando da narrativa em perspectiva teórica): com isto, privilegiamos a definição de certas fronteiras que os exercícios conceituais acerca da narrativa devem obedecer, de modo a não nos tornar confusos sobre aquilo que tem parentesco mas não é, rigorosamente falando, uma narrativa. Recuperemos então algumas das definições mais gerais que circularam em nosso primeiro encontro síncrono:
• Narrativas são representações de acontecimentos, significados por “mudanças de estados”, conferidas por uma lógica própria a universos da fábula, tais como princípios de conseqüencialidade de tais mudanças (G.Prince);
• Tal mudança de estados deve se corporificar em elementos mínimos da narratividade, envolvendo “eventos”, “coisas” ou “pessoas” e “lugares” - que constituem o universo da “história” ou da “fábula” (S.Chatman).
Se considerarmos assim a definição da narrativa como “representação” de acontecimentos ou de séries dos mesmos (no modo como Gérard Genette igualmnete a define), devemos pensar sobre as devidas grandezas sob as quais tais objetos são endereçados discursivamente sob uma significação estritamente “narrativa”: é aí que uma primeira ordem dessas fronteiras emerge, caracterizando os limites – assim como as eventuais complementaridades - entre modalidades “imitativas” e “narrativas”; a divisão entre estas grandezas significa uma herança que as teorias da narrativa recebem das clivagens clássicas da Antiguidade entre a mimesis e a diegesis - no modo como as recupera o texto de Genette, desde as idéias originais de Platão e Aristóteles.
Tendo em vista as tarefas que necessitamos cumprir para exercitarmos um maior rigor conceitual sobre a narrativa, devemos depurar de todas as discussões sobre o assunto aquilo que reporte à narratividade aspectos que poderíamos chamar de “externos” – como seria o caso de pensá-la, dentre outras coisas, a partir dos meios ou materiais empregados, como é próprio de muitas das abordagens da narrativa mais próprias ao campo de estudos da comunicação: de saída, privilegiaremos aquelas teorias que valorizaram na compreensão das narrativas sua dimensão propriamente “textual” (ou, em linguajar mais estrito, suas matrizes “semióticas”), como elemento reconhecível da comunicação de acontecimentos – seja qual for sua natureza de origem (fundada na realidade ou na fabulação ficcional), seja quais forem os meios empregados para sua atualização discursiva (visual, verbal, oral, gráfica, gestual ou que tais). Justamente por isto, precisamos determinar os termos em que o conceito de narrativa é condicionado por aquele de “texto”.
2. Comecemos então nossa exploração, partindo deste pequeno (e estrategicamente parcial) exemplo que ilustra bem o contexto em que o desfrute prazeroso ou “estético” de uma história que é construída narrativamente se põe em jogo – ao modo de um desafio interpretativo ao qual somos freqüentemente convocados – a partir de certas capacidades para compreender variadas ordens da fabulação, e pelo emprego presumido de determinados atos cooperativos de interpretação – sob a forma de uma “totalização semântica” dos universos narrados, constituídos como apostas hipotéticas sobre o sentido global das histórias.
Ao acompanharmos essa seqüência visual, enquanto espectadores de uma cena, devemos acionar uma capacidade interpretativa para sua compreensão - e que consiste, antes de mais nada, em configurá-la como uma unidade própria a um “texto”. De um ponto de vista semiótico (aquele que nos é aportado pelos textos de Umberto e Ugo Volli), esse conceito de "texto" contempla duas dimensões importantes de sua operação, ambas manifestas no exemplo com o qual introduzimos esta exposição:
• Em primeiro lugar, o texto é uma realidade que não se pode definir pelo caráter “isolado” ou “atomístico” de sua aparição (no caso da seqüência em questão, por um ou outro de seus segmentos ou momentos particulares, ou mesmo por aquilo que antecede ou sucede seus limites externos, como parte de um mundo de referência), mas apenas pelo aspecto fortemente “coordenado” dos elementos que o constituem (o que faz do texto, em primeiro lugar, uma unidade configurada: no caso da seqüência em questão, identificamos os diversos níveis através dos quais sua significação é salientada, no plano mesmo de sua apresentação, como aspectos dessa presumida unidade – tais como a uniformidade do ponto de vista da seqüência, as vozes dos personagens que conversam em off e os universos referidos por essas falas como poassivelmente articulando aquilo que veremos, no decorrer da sequência).
• Por outro lado, em segundo lugar, o funcionamento mesmo de todos esses elementos constituídos em sua significação fundamental - sob a forma de um “texto” – não é algo que se ofereça positivamente nos materiais discursivos sem que seu processo semântico dependa da instância mais ativa da recepção: em poucas palavras, é mediante um ato de interpretação (próprio ao espectador, no caso presente) que esta seqüência adquire determinados contornos de seu reconhecimento significativo; no modo como esta operação de “textualização” do material audiovisual ocorre, entram em jogo determinadas competências culturais que compõem aquilo que Umberto Eco designa como sendo a “enciclopédia” de cada intérprete.
Em suma, é pelo acionamento das ordens de saberes associados à prática interpretativa (não apenas dos textos, mas também do mundo natural e cotidiano) que a dimensão de significação textual se consagra nos variados materiais comunicacionais em que é veiculada (conhecimentos que pode vir desde as fontes mais elementares, como aquelas do espectador comum, até as mais sofisticadas, próprias ao olhar crítico e avaliativo).
Um discípulo de Eco, Ugo Volli, correlaciona essa ideia mesma do “texto” como sendo aquilo que efetiva o ato literário, em particular (ou os fenômenos de significação, geral), com essa interação que se dá entre aquilo que é manifesto (seja pelo autor de uma obra, seja por um fenômeno natural, como um sintoma clínico ou uma ocorrência atmosférica), apenas na medida em que sua significação decorra daquilo que é permitido legitimamente interpretar acerca de uma expressão (como traço intencional e plenamente cultural) ou de um acontecimento (que é relativamente inesperado e imotivado ou natural). Sem a intervenção da recepção, em suma, não haveria significação – e esta última apenas emerge quando alguém interpreta uma ocorrência na forma de um “texto”. Ao tratar esse conceito, em seu Manual de Semiótica, assim procede Volli:
“O texto é aquilo que é efetivamente recebido em uma comunicação. É pois texto qualquer fragmento do processo que seja tratado como um texto por alguém. Conforme demonstram em particular os casos de significação que discutimos no parágrafo sobre a recepção, é o destinatário que decide tratar como texto determinado fenômeno, extraindo-o da complexidade do mundo: certa coloração amarelada na pele de um paciente (‘ictérico’) é isolada de seu processo (o resto do corpo) e considerada pelo médico um sintoma de mal de fígado, enquanto todo o resto é ignorado; uma pequena zona da atmosfera mais rica em poeira em relação ao fundo (‘fumaça’) é isolada por um bombeiro e considerada um texto cujo conteúdo é a possibilidade de um incêndio.” (VOLLI, 2007: 79)
É nessa dimensão de uma “cooperação interpretativa” entre duas instâncias (configurações textuais e competências interpretativas) que emergem os primeiros problemas que nos auxiliarão na definição de algumas estruturas elementares de um modelo discursivo próprio às narrativas, na medida em que sejam pensadas como construções textuais. Ao fim dessa exposição, veremos em que sentido a sequência de Fantasmas é ilustrativa dessa economia “pragmática” ou “interacional” da compreensão textual – além de exprimir a instância de uma estrutura narrativa que é primeiramente endereçada por essa mesma compreensão virtual ou esperada de um “leitor-modelo”.
3. Voltemos agora ao caso da primeira seqüência de Stranger than Fiction, vista na sessão anterior do curso: somos introduzidos a uma configuração dos elementos da narrativa cinematográfica, tais como recursos de planificação e de articulação entre diferentes planos, ordem sucessiva e conseqüencial das ações apresentadas, recursos de redundância pelos quais percebemos que as ações envolvem certa unidade de espaço, ação, lugares, pessoas e objetos, além dos usos do som natural e diegético e da voz dos agentes como auxiliares no firmamento de uma certa coerência e atmosfera do mundo ficcional - todos eles governados por uma elocução em off das rotinas diárias e do caráter pessoal de Harold Crick, definido pela narradora (pois trata-se de uma voz feminina) como “um homem de números e cálculos infinitos e admiravelmente de poucas palavras” (mencionando ainda que seu relógio de pulso dizia ainda menos do que ele).
Nestes primeiros momentos do filme, é favorecida uma interpretação mediante a qual a designação da personagem é tudo aquilo que verdadeiramente interessa nesse segmento da história, nos fazendo negligenciar aspectos da narração tais como os do registro feminino ou o sotaque britânico da voz que narra, assim como também (no plano da história) o fato de que o relógio de pulso é mencionado como um espécie de companheiro das rotinas de Harold Crick. Em suma, dado o modo de nossa introdução ao universo da história narrada, pela organização desses variados elementos que compõem a unidade dessa primeira seqüência, naturalizamos a condução enunciativa da voz externa e assumimos pragmaticamente que o quadro semântico global da história se acomoda nos limites de uma narrativa que jogará com esses dois regimes, o da posição de uma dicção exterior ao plano da história e o da encenação mimética das ações do personagem, em seu mundo ficiconal.
De súbito, contudo, este primeiro “pacto” que fazemos com o mundo possível da história se quebra: após acompanharmos a brevíssima síntese de um dia na vida da personagem (e havendo a narradora nos advertido sobre o fato de que “na quarta-feira, o relógio de Harold mudou tudo”), após um breve intervalo em que emergem personagens como a de um pai dando uma bicicleta a seu filho e uma mulher selecionando ofertas de emprego num jornal (sem que saibamos quem são esses mesmos agentes), somos reintroduzidos à mesma dinâmica rotineira dos eventos diários de sua vida, mas com uma diferença substancial e decisiva – descobrimos, de súbito, que a voz feminina que narrara os acontecimentos anteriormente, pontuando graciosamente os diversos aspectos das ações e acontecimentos do dia de Harold Crick (assim como os eventos de sua vida interior, como seus pensamentos e emoções), pois bem, essa voz é agora literalmente percebida pela personagem, à medida em que ela realiza algumas dessas funções diárias, gerando nela uma repentina perturbação sobre o que está acontecendo.
Stranger than Fiction, dir: Marc Fortser (2006) – segunda seqüência
A perturbação que ocorre aqui define-se como uma disjunção feita sobre o universo global da história, algo a que podemos designar como sendo seu “tema”. No modo como as duas primeiras seqüências do filme organizam a função dos diferentes agentes narrativos são colocados em relação (inclusive aqueles da instância narradora), dois sentidos completamente diferentes emergem para nossa compreensão, o que afeta completamente a significação da fábula que se organiza – especialmente pela relação entre o personagem e a narradora (já que ela antes se dirige apenas a nós e posteriormente também a Harold).
Esse fenômeno de descontinuidade entre modos de compreender e acompanhar a narrativa, a partir de dinâmicas de coerentização interna dos diferentes segmentos do texto definem uma instância primeira do reconhecimento e da experiência de significação das formas narrativas, fortemente abordada por diversas teorias da significação textual: assim sendo, nosso ponto de entrada nas estruturas elementares do narrar se dá pelo aspecto previa e estruturalmente “tematizado” das sucessões de acontecimentos de uma história; em termos semióticos, isto se exprime pelo conceito do “topic” – em outras palavras, pelo caráter “tematizado” e internamente “coerentizado” das formas narrativas, sendo esse um aspecto que as primeiras teorias da literatura no século XX não deixaram de indicar:
“No decorrer do processo artístico, as frases particulares combinam-se entre si segundo seu sentido e realizam uma certa construção na qual se unem através de uma idéia ou tema comum. As significações dos elementos particulares da obra constituem uma unidade que é o tema (aquilo de que se fala). Podemos também falar do tema de toda a obra ou do tema de suas partes. Cada obra escrita numa língua provida de sentido possui um tema.” (TOMACHEVSKI, 1970: 169)
Narrativas são portanto sempre “acerca de” algo e se apresentam forçosamente “topicalizadas”, em função da potencial redundância com a qual se apresentam configuradas em sua estrutura interna, por largas partes de sua extensão (como no caso da seqüência de Fantasmas) – muito embora tal tematização possa se identificar igualmente com segmentos parciais de uma obra inteira (caso das duas seqüências de Stranger than Fiction). Os aspectos de coerência interna serão assuntos posteriores, mas agora precisamos tratar com esta questão da topicalidade do discurso narrativo, com esse aspecto em que ele se apresenta como sendo constitutivamente “acerca de” alguma coisa. Enfim, como o título dessa sessão do curso declina enquanto promessa, precisamos tratar do fato de que toda história é sobre algo, possuindo assim um “quê”.
4. Autores como Boris Tomachevski, assim como outros daqueles situados no quadro do Formalismo das primeiras décadas do século passado, representam um estágio das teorias da narrativa, definido como esforço de abstração para consolidar a literatura enquanto objeto de exame: de um lado, tal esforço não foi bem-sucedido, em virtude das dificuldades desses autores em gerar categorias que permitissem transcender a análise e crítica de obras ou estilos literários particulares. Este ponto é destacado por comentadores dessa tradição, destacando as relações complementares, ainda que remotas, entre o Formalismo russo e o Estruturalismo linguístico e semiológico, separados por quase meio século.
“O grande mérito dos estudos formalistas é a profundidade e a finura de suas análises concretas, mas suas conclusões teóricas são muitas vezes mais fundadas e contraditórias. Os próprios formalistas sempre tiveram consciência dessa lacuna: não cessam de repetir que sua doutrina está em contante elaboração.” (TODOROV, 2008: 28).
Por outro lado, o fato de serem textos escritos nas duas primeiras décadas do último século, quando domínios expressivos como o do cinema ainda não haviam consolidado uma modalidade alternativa de expressão narrativa (especialmente por seus materiais semióticos de base, tais como recursos visuais e sonoros, combinados em conjunto), a dominância da literatura como campo de provas da narratividade pode ser algo que explique, à época desses textos, a ausência de uma maior radicalização da abstração conceitual sobre os objetos narrativos – muito embora não a justifique de todo, em virtude do tanto que se pode dizer sobre fenômenos como o da pintura de temas históricos, míticos e bíblicos, nos quais estas formulações poderiam se exercitar – algo que variadas ramas da história da arte não se eximiram de exercitar, inclusive em abundância.
Mais do que isso, inclusive, estas são perspectivas de elaboração conceitual que buscam fugir aos aspectos de estrita imanência da significação narrativa: como mencionado um pouco antes, no contexto mesmo do desenvolvimento tardio de uma semiótica textual das narrativas, já emerge igualmente com os formalistas do início do século um tipo de reflexão sobre esta mesma discursividade que se pauta por uma valorização dos princípios necessariamente “interacionais”, “contratuais” ou “pragmáticos” de sua significação.
“A escolha do tema depende estreitamente da aceitação que encontra junto ao leitor. A palavra ‘leitor’ designa em geral um círculo bastante mal definido de pessoas, do qual muitas vezes o próprio escritor não tem um conhecimento preciso.’ (TOMACHEVSKI, 1970, 169,170)
Mais de meio século depois dos formalistas, Umberto Eco se interrogará sobre esse mesmo aspecto dos textos narrativos, em seu modo de programar-se semanticamente para os possíveis regimes de leitura, compreensão e fruição que vão acionar esses mesmos textos - portanto, pela relação que a semântica narrativa cria com horizontes de uma competência presumida de seus leitores: narrativas geram frequentemente uma estrutura da referência semântica aos universos da história, na medida mesma em que possam ser atualizados pela leitura. Deste ponto em diante, poderemos imaginar o maior alcance dessas categorias narratológicas do “tema” e do topic, aplicadas a domínios extra, para ou trans literários: os textos de Eco e Ugo Volli representam a emergência de um modelo explicativo que pretende escapar a um excessivo aprisionamento da análise a estruturas por demais consolidadas historicamente do discurso narrativo – como é o caso das formas literárias.
Quando Umberto Eco interroga-se, em “Estruturas discursivas” sobre um aspecto da estrutura semântica inerente às formas narrativas, ele nos conduz a um exame do modo como os textos narrativos, na sua programação característica para regimes de leitura, compreensão e fruição que o definem (portanto, pela relação que criam com a competência presumida de seus leitores) geram uma estrutura da referência semântica aos universos da história contada que serão sempre atualizados, em função das necessidades do fluxo narrativo das ações - de tal modo que a significação de cada um de seus enunciados (ou das situações dramáticas representadas através deles) será definida na estrita correlação com o avanço das ações e situações da história.
“Por exemplo, em Un Drame bien Parisien, se afirma que Raoul é um |monsieur|, o que deixa implícito que se trata de um indivíduo humano, do sexo masculino, adulto. Acontece, porém, que todo ser humano tem, como propriedade consignada pelo código, dois braços, duas pernas, dois olhos, um sistema circulatório de sangue quente, um par de pulmões e até um pâncreas. A partir do momento, porem, em que uma série de sinais do gênero advertem que não precisa preocupar-se com um tratado anatômico, este mantêm narcotizadas todas estas propriedades, até o segundo capítulo desta história, onde Raoul ergue a própria mão.” (ECO, 1986 : 70).
Nestes casos, o processo pelo qual as propriedades predicativas do discurso são selecionadas para a compreensão do leitor ou do espectador são constituídas em torno daquilo que podemos estabelecer hipoteticamente sobre o fundo “temático” ou “tópico” do discurso narrativo, em cada uma das historias que experimentamos, em regimes de leitura e fruição estética continuadas (já que nunca compreendemos um texto de um só golpe, mas na linha de um percurso de leitura): um aspecto importante da atualização das estruturas discursivas da narrativa e do papel exercido pelas marcas de gêneros discursivos concerne assim à definição de seus devidos topics, de acordo com Eco. É nestas condições, portanto, que podemos começar a nos inserir ao problema da narrativa, uma vez que ela é concebida enquanto um regime discursivo próprio a determinadas espécies de textos.
5. Um primeiro aspecto da definição do topic, enquanto categoria narratológica, relaciona-se portanto àquilo que, uma vez mais, restitui a arte de contar histórias à sua dimensão forçosamente “textual” ou “discursiva” - em suma, a algo que nos auxilia a retomar em outro sinal a noção mesma do “discurso” e de suas formas como realizações forçosamente textualizadas: sto concerne ao estatuto das condições pelas quais os universos de referência de um texto podem ser compreendidos, por se restituírem a algum grau de, por assim dizer, atualidade ou realidade; se nos restringimos às construções narrativas referidas a universos francamente ficcionais, estas condições não podem ser identificadas com o suposto de estrita existência das entidades e universos referidos pelo discurso narrativo, mas com aquilo que as teorias da narrativa identificam como “mundos possíveis”.
Nas teorias que identificam o problema do estatuto de realidade atribuído a estas entidades, a definição do “tema” de uma narrativa tem correlação muito próxima com os mecanismos textuais nos quais é estabelecido o caráter de referência relativo a tudo aquilo que é reportado no plano da história – lugares, agentes, circunstâncias e a própria lógica dos acontecimentos que preside a evolução narrativa. Em uma determinada perspectiva das teorias sobre o texto narrativo, são as operações textuais mesmas que se responsabilizam por declinar essas condições mediante as quais se subscreve a validade das entidades que habitam e as lógicas que presidem as relações em um universo de história.
“As proposições ou sentenças do texto literário formam um campo interno de referência – uma rede de referentes interrelacionados: personagens, acontecimentos, idéias e diálogo. A linguagem do texto ajuda a construir esse campo interno ao mesmo tempo em que se refere a ele. Campo de referência é qualquer universo contendo quadros de referência que se entrecruzam e interrelacionam; por exemplo: o Brasil, a Guerra de Tróia, a filosofia, o ‘mundo’ de Satyricom de Petrônio, o mundo de hoje e o que mais apresentar limites e coerência hipotéticos.” (JEHA, 1993: 82)
Justamente porque os elementos que constituem o topic são, sob esse aspecto específico, da ordem mesma do “texto”, sua eventual atualização como aspecto da narratividade é apenas a decorrência dessa dependência que seu significado assume, com respeito a uma determinação estritamente textual de seu valor: a ontologia que governa a atribuição do sentido com o qual se atribui uma referência aos objetos sobre os quais trata uma narrativa não pode ser concebida como completamente externa às relações instituídas pelo próprio texto narrativo.
“Na verdade, os mundos ficcionais são parasitas do mundo real, porém são com efeito ‘pequenos mundos’ que delimitam a maior parte de nossa competência do mundo real e permitem que nos concentremos num mundo finito, fechado, muito semelhante ao nosso, embora ontologicamente mais pobre.” (ECO, 1994: 91)
Para além contudo desta relação com o sentido imanente dos campos de referencia de uma significação narrativa, nossa inscrição aos universos discursivos se materializa no aspecto em que narrativas também se definem por este outro aspecto mais genérico dos textos, que é este de “ter um assunto” ou do sempre “ser acerca de algo” - elemento que define as práticas discursivas, como um todo e que, no exemplo conferido pelo próprio Eco, pode afetar até mesmo a compreensão de um termo simples, um vocábulo como “pescador” (na medida em que sua expressão pode implicitar semanticamente, seja as propriedades e capacidades definidoras do termo, assim como as personagens literárias ou reais conhecidas por essa profissão). Ou, como neste outro exemplo, vindo de Ugo Volli:
“Sobretudo fica claro que esse processo coincide com o outro pelo qual se estabelece ‘a respeito de quê’ é um texto, ou seja qual é o seu assunto. Um dos requisitos essenciais para que um segmento do processo (ou conjunto de mais segmentos considerados conjuntamente) possa ser sensatamente considerado um texto é que se possa dizer em torno de quê gira, a qual pergunta responde: em termos semióticos, qual é seu topic (...). Dado, por exemplo, um texto como ‘tome 200 g de farinha, uma colher de manteiga e 100 g de açúcar’, o topic selecionado será alguma coisa como ‘receita de cozinha’”. (VOLLI, 2007: 82,83).
6. No contexto de uma narrativa, pode-se ainda dizer que a interação com o leitor é algo que se encontra delimitado, especialmente nos aspectos da significação que este último pode buscar no plano da história que se conta – aquilo a Tomachevski define como sua “fábula”: no registro ficcional dessa presença expressa da instância enunciativa (como é o caso de Stranger than Fiction), tal função do posicionamento discursivo da história instaura efeitos de uma parcial “abertura” dos sentidos, pelo qual a estipulação de um topic é muito mais relativa às atualizações que ocorrem pela interação do texto com a instância do leitor do que pela mera explicitação semântica desta condição na manifestação do discurso. Não é por outra razão que Eco (e mesmo, antes dele, o próprio Tomachevski) define o “assunto” de uma narrativa como constituindo a dimensão “pragmática” da relação entre texto e leitor, e não como propriedade “semântica” imanente do primeiro.
“Tudo isto nos diz que a identificação do topic constitui matéria de inferência, ou então do que Peirce chamaria de abdução (…). Identificar o topic significa aventar uma hipótese sobre uma certa regularidade de comportamento textual. Esse tipo de regularidade é também aquele que, acreditamos, fixa tanto os limites como as condições de coerência de um texto.” (ECO, 1986 : 72).
E, na medida em que a instância da recepção é a responsável pela ativação das estruturas textuais do plano da expressão (quaisquer que sejam suas matérias, lingüísticas, escritas, gestuais, fílmicas), o texto narrativo deve ser capaz de indicar, de modo suficiente aos horizontes enciclopédicos que ele prevê, o nível “tópico” de sua resolução, nas várias camadas em que ele pode se manifestar: no exemplo da primeira seqüência de Stranger than Fiction, isso é garantido pela voz da narradora, quando enuncia que “Esta é a história de um homem chamado Harold Crick e de seu relógio de pulso”, ao passo que a segunda seqüência tira proveito dessa mesma estrutura para construir um outro tema – no qual esta mesma voz é agora invocada pela performance de Harold como passando a fazer parte da fábula, na medida em que ele a interroga, enquanto segue a mesma rotina descrita por ela, na seqüência anterior. De todo modo, as duas seqüências, tomadas em separado, aportam sinais respectivos dos modos da condução de seu processo de leitura, requisito fundamental das economias interpretativas que se instauram na relação entre os níveis do texto e os de sua leitura.
“Muitas vezes, o sinal é explícito: exatamente o titulo ou uma expressão manifestada que diz precisamente de que coisa o texto quer se ocupar. Às vezes, pelo contrario, deve-se procurar o topic. O texto então o estabelece, reiterando por exemplo com muita evidência uma série de sememas ou, em outros termos, de palavras-chave. Outras vezes, estas expressões-chave, mais do que abundantemente distribuídas, estão apenas estrategicamente colocadas. Nestes casos, o leitor deve, por assim dizer, farejar alguma coisa de excepcional em um certo tipo de dispositio e, nessa base, aventar a própria hipótese.” (ECO, 1986: 73,74)
Outro aspecto importante a se destacar (e que já podemos ter notado pela leitura do texto de Tomachevski, por exemplo) é o de que a ocorrência do topic não se aplica apenas à extensão global de uma obra narrativa, mas caracteriza – até mesmo com certa independência – cada uma de suas partes ou episódios isolados:
“A noção de tema é uma noção sumária que une a matéria verbal da obra. A obra inteira pode ter seu tema, ao mesmo tempo que cada parte da obra. A decomposição da obra consiste em isolar suas partes caracterizadas por uma unidade temática específica (TOMACHEVSKI, 1970: 173).
Este mesmo ponto é destacado por Eco, ao nos lembrar que a postulação dos topics se dá em “percursos de sentido” que o leitor faz, não obstante a extensão da unidade de significações do texto – seja este uma obra literária, um filme de longa metragem, uma saga cinematográfica, os diversos níveis de uma série de televisão, desde um episódio, um arco ou uma temporada, e até mesmo uma pintura ou uma fotografia únicas. A fixação desse nível “tópico” do discurso narrativo implica um exercício mais ou menos livre da instância da leitura, com respeito a este contexto mais extenso, consideradas suas condições mais específicas de organização textual – como capítulos, episódios, seqüências, arcos (ou então a aspectos parciais e aparentemente insignificantes, como enquadramentos, cores, pontos de vista, dentre tantos outros).
“Por fim, cumpre observar que um texto não tem necessariamente um único topic. Podemos estabelecer hierarquias de topics, desde topic de frase até topics discursivos, e assim por diante, até os topics narrativos e os macrotopics que engloba a todos (...). A qualquer nível desta hierarquia, um topic estabelece uma aboutness, um ser-acerca-de-algo.” (ECO, 1986: 74)
Como o processo de atribuição de um assunto ou topic constitui uma espécie de “aventura interpretativa”, proposta por uma estrutura discursiva da significação (não presente apenas em narrativas, mas em toda ordem textualizada do sentido), conferida pela interação virtual que se instaura entre aquilo que o texto aporta e as capacidades interpretativas da leitura, a coerência que se estabelece nas histórias é, por outro lado, uma propriedade do texto propriamente dito: neste ponto, ao percorrermos uma história, através das apostas inferenciais que fazemos sobre o significado global que elas aportam (nos vários níveis em que esta propriedade se inscreve nos segmentos do texto), devemos contar com um aspecto do comportamento textual desses segmentos que define algo a semiótica textual designa como sendo a “isotopia” deste texto – instância distinta mas pragmaticamente complementar, àquela do topic (e que deve ser devidamente tratada à parte, na próxima sessão do curso).
Referências Bibliográficas :
ECO, Umberto. “As estruturas discursivas”. In: Lector in Fabula: pp. 69,83;
VOLLI, Ugo. “Estruturas”. In: Manual de Semiótica: pp. 55,88.
TOMACHEVSKI, Boris. “Temática”. In: Teoria da Literatura: formalistas russos: pp. 169, 204.
Leituras Adicionais:
JEHA, Julio. “Mimese e mundos posssíveis”. In: Signótica; pp. 79,90;
TODOROV, Tzvetan. “A herança metodológica do formalismo”. In: As Estruturas Narrativas: pp. 27,52.
Próximas Leituras :
ECO, Umberto. “Estruturas narrativas” . In : Lector in Fabula : pp. 85,92;
VOLLI, Ugo. “Histórias”. In: Manual de Semiótica: pp. 91,132.
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