Notas da segunda sessão do curso (16/04/2025): Fronteiras da narrativa (G. Genette e R.Barthes)

Introdução às Teorias da Narrativa (GEC 114)
Aula 2 (16/04/2025)


Definindo a narrativa como objeto de estudos: fronteiras conceituais de um regime narrativo dos textos (R.Barthes/G.Genette) 

 

0. Ao se iniciar essa aventura pelos discursos que evocaram a narratividade enquanto problema a ser estudado de modo mais sistemático, nos deparamos certas noções sobre o conceito mesmo de “narrativa”, dos quais devemos supostamente partir. Ao avaliarmos aquilo que as matrizes antropológicas, históricas e poéticas sugerem para a formulação da narrativa como um problema central nas humanidades, podemos chegar a algumas idéias desse objeto - na mesma proporção dos riscos que podem ficar implicados por uma certa generalização dos usos mais freqüentes da idéia de “narrativa”, especialmente em nossos dias. 

 

De todo modo, se o objeto de uma teoria deve pagar o preço de sua generalidade, o que se observa nos esforços de definição sobre aquilo que uma teoria da narrativa deve examinar já implica, por sua postulação mesma, alguns parâmetros mínimos de sua delimitação – sendo que três eixos fundamentais se abrem inicialmente para orientar esta apresentação do objeto desses estudos, a saber: 

 

• Tratar “narrativa” enquanto conceito, posta entre aspas, para indicar que devemos tentar fugir a caracterizações genéricas desse termos (usuais no senso comum de seu emprego) e que vinculam o ato discursivo do narrar a outros com ele aparentados - tais como o da “descrição” e o do “relato”; 

 

• Definir certas “fronteiras” conceituais da narratividade: conseqüência desse esforço de discriminação, dois planos principais do conceito de narrativa se destacam: no plano “interno”, exploraremos o ato narrativo, em sua diferença com respeito a outros tipos de discurso, mas também na proximidade com outros (como o do “testemunho”); no plano “externo”, evocamos as entidades e eventos representáveis discursivamente, na condição em que são tratados narrativamente; 

 

• Situar a narrativa no plano irrecorrível dos "regimes textuais", ou seja, o fato de que a narrativa será aqui tomada, em seu sentido genérico e elementar, como constituindo um particular regime discursivo de significações, identificado pelas características que elencarmos para separar e especificar esse regime, relativamente ao conjunto das operações em que empregamos nossa linguagem para comunicar o que quer que seja. 

 

1. Na junção dessas três dimensões de uma demarcação do conceito de “narrativa”, pretendo chegar a uma primeira aproximação dos modos nos quais seu estudo torna-se relevante para o exame e avaliação de fenômenos e processos do campo da comunicação na cultura contemporânea. De saída, esta consideração da narrativa como fenômeno de comunicação demanda cuidados com respeito ao fato de que uma boa parte daquilo que herdamos desse gesto de delimitação conceitual sobre a narrativa resultou na restrição dos objetos a serem examinados por essa teoria – na medida em que, como veremos, seus principais artífices se encontram no campo dos estudos literários. 

 

A propósito, não é ilícito que comecemos esse percurso, a partir de uma provocação suscitada pelo contraste entre dois segmentos de textos importantes da bibliografia das teorias da narrativa – na verdade, apenas as primeiras sentenças desses textos: ambos situam-se na mesma tradição intelectual (de fato, encontram-se na mesma coletânea dedicada à análise estrutural da narrativa), representando estratégias aparentemente distintas desse gesto de delimitação das formas narrativas, em relação a outras manifestações da expressão discursiva ou textual. No caso da primeira delas, lemos uma definição tentativa desse conceito central: 

 

“Caso se aceite, por convenção, permanecer no domínio da expressão literária, definir-se-á sem dificuldade a narrativa como a representação de um acontecimento ou de uma série de acontecimentos, reais ou fictícios, por meio da linguagem e, mais particularmente, da linguagem escrita.” (GENETTE, 2009 : 265) 

 

Esta é a primeira sentença do artigo “Fronteiras da narrativa”, que Gerard Genette publicou originalmente no número 8 da revista francesa Communications, em 1966: na definição que ele aporta para o conceito, nota-se primeiramente a restrição do fenômeno, mesmo que a título condicional, ao “domínio da expressão literária”, além do o fato de que essa representação discursiva se observa preferencialmente “por meio da linguagem e, mais particularmente, da linguagem escrita”. 

 

Antes, contudo, de o repreendermos por uma excessiva demarcação do conceito (aspecto que, como veremos em instantes, se torna menos evidente, quando lemos o restante de sua manifestação sobre o assunto, após essa passagem), tentemos examiná-lo pelo aspecto do “sintoma” que esta definição indica – e que independe desse autor, em particular: de fato, ainda que as teorias da narrativa tenham se expandido, no decorrer do último século, a ponto de tornarem-se repertório de campos de conhecimento como os da história, da antropologia e mesmo o dos estudos da comunicação, seus vocabulários conceituais e analíticos de base foram, de fato, constituídos pelo esforço de pensadores situados predominantemente no campo dos estudos literários. 

 

Deste modo, compreende-se como a aparente cláusula de restrição genettiana na definição de “narrativa” exprime menos um arbítrio teórico sobre a extensão do fenômenos coberto por essas teorias, e mais uma espécie de cobrança epistemológica – baseada, por sua vez, na história dos campos intelectuais que a inventaram, por assim dizer, enquanto problema teórico e conceitual. Ainda assim, preservando em vista a definição de Genette, passemos em revista esta outra afirmação sobre o conceito de narrativa, situada no mesmo contexto de estudos - ambos exprimindo um ethosestruturalista da análise cultural: 

 

“Inumeráveis são as narrativas do mundo. Há, em primeiro lugar uma variedade prodigiosa de gêneros, distribuídos entre substâncias diferentes, como se toda matéria fosse boa para que o homem lhe conferisse suas narrativas: a narrativa pode ser sustentada pela linguagem articulada, oral ou escrita, pela imagem, fixa ou móvel, pelo gesto ou pela mistura ordenada de todas essas substâncias; está presente no mito, na lenda, na fábula, no conto, na novela, na epopéia, na história, na tragédia, no drama, na comédia, na pantomima, na pintura (...), no vitral, no cinema, nas histórias em quadrinhos, no fait divers, na conversação.” (BARTHES, 2009: 19) 

 

Este é Roland Barthes, no início de seu artigo “Introdução à análise estrutural da narrativa”, publicada no mesmo número da revista em que se encontra o artigo de seu colega Genette: logo no início, o texto indica uma inflexão, com respeito aos limites que parecem condicionar a definição que encontramos em “Fronteiras da narrativa”; nota-se que, diferentemente de seu colega, Barthes lista não apenas a linguagem articulada (escrita ou oral) enquanto meio para narrar – mas inclui também a narrativa pela “imagem, fixa ou móvel, pelo gesto ou pela mistura ordenada de todas essas substâncias”. Não apenas isto, ele também inclui no rol das manifestações culturais que podem ser abordadas em seu aspecto de exprimir a narratividade alguns dos fenômenos que são mais caros a um campo como o da comunicação – fechando sua lista de fenômenos a serem estudados com o cinema, os quadrinhos e o jornalismo. 

 

Ora, como se pode compreender esta aparente contraposição entre os dois autores? Certamente, não supondo que a posição do último seja algo em que se possa fiar uma compreensão adequada de suas idéias sobre a narratividade - já que, ao desenvolver suas idéias acerca da narrativa, Barthes não se escusa em praticar igualmente certas discriminações sobre os fenômenos de sentido a ela associdos, especialmente quando se trata de definir os fundamentos linguísticos de todo processo de significação, mesmo aqueles articulados a partir de outras matérias significantes (como a imagem e o vestuário, por exemplo). 

 

Ademais, há certa injustiça embutida em adotar a passagem de Genette como contraponto à aperente liberalidade com a qual Barthes delineia o alcance e a extensão materiais das formas narrativas: pois a afirmação com a qual se abre “Fronteiras da narrativa” é apenas um gesto retórico, visando reconhecer que uma tal restrição conceitual é tão “evidente e simples” em sua postulação, quanto também “inconveniente”, com respeito a outras possibilidades de se pensar o ato narrativo, do ponto de vista de sua teorização. Nesse sentido, o tracejamento de fronteiras conceituais não deveria ser pensado a partir dessa identidade entre “narrativa” e “literatura”, mas certamente exercitada com algum rigor fundado em outro tipo de matriz. Nas palavras do próprio Genette, seguindo-se àquela passagem citada logo acima: 

 

"Essa definição positiva (e corrente) tem o mérito da evidência e da simplicidade; seu inconveniente principal é talvez, justamente, encerrar-se e encerrar-nos na evidência, mascarar aos nossos olhos aquilo que precisamente, no ser mesmo da narrativa, constitui problema e dificuldade, apagando de certo modo as fronteiras de seu exercício, as condições de sua existiencia." (GENETTE, 2009: 265).

 

Ainda assim, é justo dizer que sua teoria da narrativa, sendo de enorme importância para o percurso que faremos em sua companhia, no decorrer desse livro, exprime-se fundamentalmente por essa preferência em situar os fenômenos literários como campos de prova preferenciais de sua exploração sobre o discurso narrativo. Considerados esses pontos da herança epistemológica das teorias da narrativa em relação aos estudos literários e o do maior alcance de fenômenos narrativos, tomados como operações textuais, podemos começar a explorar certas condições nas quais o estudo das formas narrativas encontra seus devidos objetos, de maneira mais expressa. Em suma, precisamos definir as condições nas quais se pode delimitar aquilo que é uma narrativa, relativamente àquilo que ela não é, sem trazermos para essa demarcação modelos derivados da variedade dos fenômenos culturais que podem ou não ilustrar esse conceito. 

 

2. De um modo geral e igualmente provisório, se reconhece que as teorias da narrativa encontram-se concernidas com uma particular modalidade de materializações textuais de produções discursivas (já que, em seu texto, o próprio Barthes identifica a teoria da narrativa como sub-capítulo de uma “lingüística do discurso”): ela é definida como “representação de acontecimentos” (pouco importa se reais ou fictícios), conferindo uma característica a seus modos de apresentação que é precisamente aquilo que define o discurso narrativo como objeto digno de estudos. Nesse sentido, um aspecto particularmente definidor da organização discursiva das formas narrativas tem a ver com aquilo que significa atribuir a uma narrativa o caráter de “representação”. Numa linha significativamente semelhante, o narratólogo norte-americano Gerald Prince define precisamente uma narrativa como a representação discursiva de ações, manifesta como “transformação de estados de coisas”, motivada por um caráter inesperado ou não-previsível de sua sucessão.   

 

“Nem tudo é (uma) narrativa e nem toda representação é narrativa. Para uma entidade ser uma narrativa, ela deve ser analisável como a representação da transformação (não aleatoriamente conectada, não simultânea e não contraditória) de um (ou mais de um) estado de coisas, um (ou mais de um) evento não logicamente pressuposto pelo estado transformado e/ou não implicando logicamente sua transformação. Mesmo que seja uma definição um pouco ampla, ao mesmo tempo flexível e limitadora, ela possui, eu penso assim, várias virtudes (para além de concordar ou, ao menos, não conflitar com visões usualmente defendidas sobre a natureza da narrativa).” (PRINCE, 2003: 5,6). 

 

Evidentemente, uma tal definição pode parecer a muitos como por demais restritiva, já que os eventos que a narrativa supostamente representa não se definiriam apenas pelo aspecto de sua evolução ou “transformação” no tempo – pois há uma significação propriamente narrativa de “não-eventos” ou de quadros de acontecimentos que se preservam quase imutáveis no tempo: em suma, ainda que a disposição temporal e ordenada de acontecimentos seja um aspecto necessário da narratividade, ainda haveria itens a serem considerados em uma caracterização “estrutural” mais vasta das formas narrativas, de modo a chegarmos a uma definição suficiente do conceito. No breve esquema que o crítico e teórico da literatura e do cinema norte-americano Seymour Chatman desenha sobre o objeto de estudos das teorias da narrativa, vemos que os eventos são apenas um dos componentes desse objeto (constituindo a forma estruturada dos conteúdos de uma história), e que devem ser necessariamente acrescidos de outras unidades existentes, tais como “personagens” e os “cenários” de sua ocorrência.

 

Chatman, Story and Discourse, esquema (1978: p. 26)

 

No sentido em que possamos fazer a síntese de todos esses elementos que certamente constituem (sem exaurir) a caracterização teórica da narrativa, encontramos uma definição mínima desse conceito, por parte de Chatman, e que permite incluir a representação dos eventos como característica própria dessas formas - mas agora incorporando-a a um complexo mais vasto de componentes estruturalmente necessárias para sua caracterização enquanto objeto de estudos: eles envolvem não apenas aquilo que é da ordem dos “conteúdos” ou da “história” (factual ou fictícia), mas sobretudo um “plano da expressão” que se identifica como a parte do “discurso” narrativo – portanto, com suas estruturas de transmissão e diferentes materialidades de manifestação. 

 

“Mas o que significa, na prática, dizer que a narrativa é uma estrutura significativa a seu próprio titulo? A questão não é ‘o que faz qualquer história dada ter sentido?’, mas antes, ‘o que o que narrativa (ou a narrativização de um texto) significa?’. Os significantes ou os significados são exatamente três – eventos, personagens e detalhes de cenário; os significantes ou significados são aqueles elementos na proposição narrativa (qualquer que seja seu meio) que podem estar para qualquer um desses três, portanto qualquer tipo de ação física ou mental para os primeiros (eventos), qualquer pessoa (ou, de fato, qualquer entidade que possa ser personalizada) para segundo (personagens) e qualquer evocação de um lugar para o terceiro (cenário).” (CHATMAN, 1978: 24,25) 

 

Naquilo que importa para essa definição da narrativa, o estatuto dos “personagens” ou “agentes”, tomados como elementos da estrutura narrativa, é menos relativo aos aspectos “miméticos” de sua apresentação em contextos dramáticos (não sendo assim importante que sejam figuras humanas ou antropomórficas), mas que estejam incorporados aos universos funcionais da representação das ações ou das interações que fazem com outros elementos do universo encenado pela narrativa (com os eventos, com outros personagens ou com os cenários e seus objetos). 

 

Wall-E (2008), dir. Andrew Stanton

 

Recapitulando, então, até aqui:

 

a. Examinamos que as teorias da narrativa têm por tarefa estabelecer princípios e unidades mínimas constituintes de representações de acontecimentos de toda espécie – tais objetivos são ilustrados aqui pelo modo como autores como Roland Barthes identificaram a variedade histórica, social, material e de gêneros discursivos que materializam a narratividade. 

 

b. Mais especificamente, contudo, narrativas são representações de acontecimentos, significados por “mudanças de estados” que acometem todo tipo de objeto ou evento, conferidas por uma lógica própria a universos discursivos - por exemplo, com respeito a princípios de consequencialidade de tais mudanças (tal é o modo como Gerald Prince especifica o conceito de narrativa). 

 

c. Por fim, o caráter da mudança de estados que define a narrativa deve forçosamente se corporificar em elementos mínimos da narratividade, envolvendo assim “eventos”, “coisas” e “lugares”, de modo a que sua significação possa ser atribuída como própria as formas narrativas: a conhecida unidade aristotélica de pessoa, lugar e tempo conferiria finalmente substância ao sentido de mudança que é próprio à ordenação narrativa. Segundo Chatman, para além de representar transformações, uma narrativa inscreve tais mecânicas a uma sucessão de eventos, que devem conter personagens e ambiências, de modo a figurar compreensivelmente como uma “narrativa”. 

  

3. Ao sumariarmos esses pontos de um esforço por delimitar aquilo que é/não é uma narrativa, deixamos deliberadamente de fora o intento de demarcação que Genette ensaia, em “Fronteiras da narrativa” – e que, na comparação com a aparente benevolência de Barthes sobre o assunto, exprimiria uma criticável restrição do campo de exames dessas teorias. Pois bem, é hora de retomarmos seu argumento, para evocar uma primeira instância na qual realmente faz sentido estabelecer tais limites, ainda que preservando a extensa materialidade de fenômenos culturais pelos quais podemos reclamar a legitimidade de uma teoria do discurso narrativo. 

 

E nosso esforço aqui começa com a importante definição desse objeto como consistindo em uma “representação de acontecimentos” - pois nela está contida a idéia de que uma história se conta como atualização de eventos dispostos em seqüência - algo que nos coloca no centro de importantes problemas que antecedem as materialidades de sua mediação (sejam elas exclusivamente literárias ou lingüísticas, ou então ampliadas para compreender outros regimes de significação discursiva, como aqueles listados por Barthes). Pois bem, se a narrativa é uma “representação”, como devemos implicar o “narrar” com o “representar”? Ao remetermos um conjunto de eventos através de sua ordenação narrativa, admitimos pelo menos duas grandezas de sua manifestação: 

 

a. de um lado, as ações que puramente acontecem, envolvendo os corpos e seus contextos mecânicos de interação – mas também incluídas aí as expressões verbais dos falantes, através dos diálogos ou outras formas de emissão de sons ou de pensamentos; 

 

b. em segundo lugar, há também a condução mediada desses atos de representar acontecimentos, por parte de um narrador, orientando o transcurso da história (verbalmente ou por aspectos presumidos de sua presença), mas também nos permitindo compreender a lógica geral da articulação entre os variados segmentos da mesma. 

 

Na integralidade do que se designa pelo ato mesmo de narrar, manifestam-se duas balizas fundamentais do conceito mesmo de “representação”, saber: aquela conferida pela “imitação” das ações e dos agentes, de um lado (a que os antigos designavam pelo termo da mímesis); e aquela oferecida pela “elocução” da história, seja pela explicitação das vozes narrativas ou pela naturalização dos procedimentos imitativos – em todo caso, definida como “narração” ou diegésis. Ao admitirmos que narrar é representar, resulta que esta representação pode se apresentar, ora como “enunciada”, ora como “imitada” (ou até mesmo como mistura de ambas), sempre conforme o contexto, os gêneros e os modos de sua apresentação. 

 

Stranger than Fiction, dir. Marc Forster (2006) - seqüências iniciais (0:00 até 3:45) 

 

No contexto de um filme narrativo, por exemplo, quando ouvimos uma voz em off, que declina as características de um personagem (definidindo-o, por exemplo, como “um homem de infinitos cálculos e poucas palavras”), a função dessa instância do discurso fílmico representa, sob um modo que é mais diegético que imitativo, aquilo que a encenação fílmica poderia apresentar de modo mais “direto”. Para além disso, o fato de que esta mesma voz, ao falar das rotinas pessoais e profissionais desse personagem, nos reporta que aquilo que vemos acontecer, no plano mimético (o personagem acordando, se preparando para ir ao trabalho, cumprindo suas funções e voltando para casa), aconteceu “todos os dias, durante 12 anos”, trata-se de algo que somente poderia se materializar num modo diegético – ao menos se considerarmos os cânones estilísticos do cinema narrativo clássico.

 

Ao examinarmos um caso de representação narrativa como a de um filme de ficção mais ou menos tradicional, no qual as funções representativas da história se repartem entre aquilo que a sucessão das imagens nos reporta e aquilo que uma instância narrativa nos comunica, através de uma voz exterior à cena, nos instalamos finalmente em uma primeira “fronteira” sobre a qual Genette exercita sua própria definição da narrativa enquanto representação de ações: ela nos restitui ao diálogo manifesto por duas das grandes fontes do pensamento clássico sobre o assunto na Antigüidade - aquela da crítica platônica da mímese, de um lado, e aquela outra da imitação como fundamento de toda poiésis, em Aristóteles, de outro. 

 

“A classificação de Aristóteles é, à primeira vista, completamente diferente, pois que reduz toda poesia à imitação, distinguindo somente dois modos imitativos, o direto, que é o que Platão nomeia propriamente imitação, e o narrativo, que Aristóteles denomina, como Platão, diegesis. Por outro lado, Aristóteles parece identificar plenamente, como Platão, o gênero dramático ao modo imitativo, mas também, sem levar em consideração em princípio seu caráter misto, o gênero épico ao modo narrativo puro. Esta redução pode prender-se ao fato de que Aristóteles define, mais estritamente do que Platão, o modo imitativo pelas condições cênicas da representação dramática.” (GENETTE, 2011: 267,268) 

 

É possível supor que a argumentação genettiana favoreça a posição aristotélica sobre esse duplo estatuto da representação narrativa – já que, ao contrário das cláusulas restritivas de Platão sobre a imitação em contextos narrativos, o Estagirita apenas separou a forma narrativa do poema, conforme seus modos de representação (mimético ou diegético), mas sem negar a nenhum deles seu valor propriamente poético – já que, segundo ele, “toda poiésis é mímesis”. Nesse contexto, podemos admitir o drama encenado do cinema, por exemplo, mesmo que nele aparentemente prepondere o modo imitativo, com a apresentação direta das situações, cenários e personagens. Em suma, podemos supor que Genette adere às posições de Aristóteles, no que respeita conjugar imitação e elocução, sem prejuízo para sua teoria narrativa.

 

“Esta divisão teórica, que opõe, no interior da dicção poética, os dois modos puros e heterogêneos da narrativa e da imitação, conduz e funda uma classificação própria dos gêneros, que compreende os dois modos puros (narrativo, representado pelo antigo ditirambo, mimético, representado pelo teatro), mais um modo misto, ou, mais precisamente, alternado, que é o da epopéia, como se acaba de ver pelo exemplo da Ilíada.” (GENETTE, 2011: 267) 

 

Exemplos da persistência dessa separação clássica entre “mimese” e “diegese” emergem - ora como signos de uma certa ironia humorada, ou como reatualização moderna dos preceitos de uma diegese fundada nas funções tradicionais do côro – como ilustrações de dois diferentes exemplares desse recurso a uma voz diegética, ao modo platônico, no cinema contemporâneo: 

 

Mighty Aphrodite (1995), dir. Woody Allen - coro inicial


Henry V (1989), dir. Kenneth Branagh - coro inicial

 

No caso de Woody Allen, temos a recriação de uma dicção narrativa, fundada na dimensão “diegética” dessa representação dos acontecimentos – mas que serve apenas de exemplo anacrônico de funções que o drama moderno já aprendeu a realizar como partes da “exposição” narrativa – especialmente mais própria à funçã de dar início a histórias. Já na adaptação de Kenneth Branaugh, o que testemunhamos é uma espécie de estilização do côro clássico em Shakespeare, inclusive com a explicitação desta condição de ser performada por um ente externo ao universo da história a ser contada – ele não é um dos personagens da ação a ser encenada a seguir. Nos dois casos, contudo, pode-se perguntar se é efetivamente o côro a instância que conduz as duas narrativas - na medida em que ambos desaparecem, assim que a encenação se efetiva, com a ação dos personagens em primeira linha.

 

4. Não entraremos aqui no cipoal de problemas teóricos e quase filológicos da discussão sobre “mímese” e “diegese”, tampouco em exegeses sobre os significados mais profundos da elaboração da Antiguidade clássica sobre a poesia dramática ou narrativa: nosso propósito aqui é o de recuperar, a partir dessa elaboração de Genette sobre as “fronteiras” da conceituação sobre o discurso narrativo sobre uma certa medida com a qual se pode formular essa oscilação entre imitação e narração, em chaves mais produtivas – e que, em última instância, nos fará olhar para seu argumento com aquela mesma simpatia que dedicamos a Barthes, quando este anuncia, já de saída, que podemos falar de narrativas, para além das fronteiras da “literareidade”. É assim que descobriremos que, mesmo quando parece associar-se aos preceitos aristotélicos de não-rejeição da mímese como modalidade poética, Genette faz importantes reparos sobre o modo de se incluir a imitação em uma teoria da narrativa.

 

Por exemplo, na representação aparentemente “direta” (portanto, mimética) de diálogos entre personagens ou naquela de ações da intriga narrativa (como perseguições, por exemplo), pode-se pensar que seu aspecto de imitação se sobreporia a quaisquer outras funções de sua presença num contexto propriamente poético (ou especialmente dramático, no caso da atualização teatral ou fílmica dessas situações). Genette ainda enxerga nesses episódios miméticos de um poema dramático (em um filme ou numa peça de teatro) uma dimensão de ordenação discursiva da história ou da fábula, sendo precisamente esta ordenação que faz tais situações pertencerem ao caráter “narrativo” de sua constituição – portanto regidos pelo modo diegético e não puramente mimético. Concebidas como “representações”, tais eventos genuinamente narrativos deveriam ser separados com respeito àquilo que é, por outro lado, pura “imitação das ações” (já que estas definem-se como meras transcrições, como no caso da apresentação em ordem direta das falas de personagens em um romance literário, por exemplo). 

 

O critério para operar esta distinção entre modos de apresentação no plano interno de uma forma narrativa é precisamente o de estabelecer para sua dimensão “diegética” um caráter rigorosamente representacional: isto significa, no caso da literatura (aquele com o qual estão concernidos, em geral, todos os que mais pensaram sobre o estatuto teórico da narratividade), que a narrativa é concebida como “mediação lingüística de realidades não-lingüísticas” (portanto, como representação que nos confere uma realidade, a partir de sua tradução por enunciados, frases, falas e pensamentos), permitindo a Genette depurar dos segmentos puramente miméticos de uma história (diálogos e descrições são os casos mais exemplares) seu aspecto de pertencimento à narrativa - já que estas porções do que é narrado constituem-se como meras transcrições lingüísticas de uma realidade igualmente lingüística.

 

Lembremo-nos, contudo, de que Genette está tratando predominantemente de casos da narrativa literária: ainda assim, caberia estabelecer o mesmo princípio de separação entre “mimese” e “diegese” para determinar que - no caso de uma narrativa fílmica - aquilo que as imagens “mostram” (no regime icônico próprio a tais segmentos da mímese, enquanto ações das personagens) é funcionalmente distinto daquilo que certos recursos visuais, gráficos e de seleção material – tais como o enquadramento, a ambientação e a montagem, sem contarmos a possibilidade de uma narração em off – permitem estabelecer como aspectos da ordenação das seqüências de ações, mediando pela forma gramatical da ordem fílmica uma realidade que não poderia ser experimentada diretamente pelos sentidos. 

 

À luz do caso que evocamos de uma representação fílmica das rotinas de um personagem que é “mostrada” pelas imagens e “narrada” por uma voz externa às ações, se exibe o aspecto de uma convivência produtiva desses dois regimes como partes de uma mesma poiésis narrativa e dramática. Contudo, mais do que ilustrar algo que a própria teoria poética de Aristóteles já admitia (a saber, a da perfeita legitimidade de modos “mistos” de representação narrativa), esse mesmo exemplo ilustra o argumento final de Genette sobre as clivagens entre “imitação” e “narração”: na relação com o preceito aristotélico de que toda poiésis é imitativa, o autor de “Fronteiras da narrativa” sugere, como alternativa, que “toda mímese é narrativa”. 

 

Nesse percurso que nos trouxe de uma suposição acerca da imanência literária do conceito de narrativa (e que motivou um tipo de demarcação que identificava o “narrativo” com o “literário”, subtraindo a todo resto a possibilidade de ser um objeto de exame), Genette finalmente nos introduz à ideia de que a narrativa constitui-se como “modo” e não como “meio”. Ainda assim, estamos a alguma distância daquilo que define, no plano das histórias que contamos/mostramos/lemos/vemos o assunto por excelência de uma organização narrativa, assim concebida como modalidade discursiva. É chegado o momento, então, de nos aproximarmos desse núcleo duro da narratividade, da substância mesma das histórias que nos chegam mediadas pelo discurso narrativo.

 

Referências Bibliográficas: 

BARTHES, Roland. “Introdução à análise estrutural da narrativa”. In et al.: Análise Estrutural da Narrativa: pp. 19,62. 

GENETTE, Gérard. “Fronteiras da narrativa” . In et al.: Análise Estrutural da Narrativa : pp. 265, 284. 

 

Leitura Recomendada: 

CHATMAN, Seymour. “Introduction”. In: Story and Discourse. Ithaca: Cornell University Press (1978): pp. 15,42.

PRINCE, Gerald. “Surveying narratology”. In: What Is Narratology? (Tom Kindt, Hans-Harald Muller, Eds.). Berlin: Walter de Gruyter (2003): pp. 1,16. 

 

Próximas Leituras: 

ECO, Umberto. “As estruturas discursivas”. In: Lector in Fabula: pp. 69,83. 

TOMACHEVSKI, Boris. “Temática”. In: Teoria da Literatura: formalistas russos: pp. 169, 204. 

VOLLI, Ugo. “Estruturas”. In: Manual de Semiótica: pp. 55,88.

 

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